Agro monitora efeitos da aliança entre China e Rússia

Professor de relações internacionais projeta efeitos no médio e longo prazo

  • Por Kellen Severo
  • 27/03/2023 09h00
Pavel Byrkin/Sputnik/AFP - 21/03/2023 O presidente russo, Vladimir Putin, e o presidente da China, Xi Jinping, fazem um brinde durante uma recepção após suas conversas no Kremlin O presidente russo, Vladimir Putin, e o presidente da China, Xi Jinping, fazem um brinde após conversa no Kremlin

A assinatura de diversos acordos e a aproximação para uma “nova era” entre China e Rússia poderão trazer impactos ao Brasil do Agro. De acordo com Gunther Rudzit, professor de relações internacionais da ESPM, o Brasil, por ser um país estratégico, será disputado num futuro por dois lados: o americano-europeu e também pelo da aliança entre chineses e russos. “E nós temos interesses tanto do lado ocidental, americano-europeu, quanto do chinês, principalmente o agronegócio“, disse. Confira a entrevista completa.

A assinatura de diversos acordos entre China e Rússia nesta semana indica que estamos em uma nova era da geopolítica?
Esses dois países são os principais a questionarem a ordem internacional estabelecida pelos Estados Unidos, esses aliados desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o que a gente chama de uma ordem internacional liberal. Liberal porque é baseada nos princípios liberais da Europa Ocidental. Desde 2008, quando teve a crise econômica financeira, Rússia e China vêm aumentando as críticas, e ganharam corpo nos últimos anos. Então, eles querem relativizar alguns pontos dessa ordem, como o entendimento do que é democracia, o que são os direitos humanos e, principalmente, relativizar qual o papel do Estado na economia e no livre comércio. Aí é que tem um encontro desses interesses entre russos e chineses se contrapondo ao Ocidente como um todo. A guerra, portanto, é um resultado desse embate para uma mudança na ordem internacional, ela não é causa de todo esse embate. Se antes do conflito eles agiam de uma forma quase que independente, um dos símbolos talvez mais próximos de uma tentativa de grupo foi a criação dos Bric, depois Brics, lá atrás, em 2009, no meio da crise financeira. Com a visita de Vladimir Putin à China no ano passado, em 4 de fevereiro, 20 dias antes de começar a guerra, quando fizeram uma declaração, a primeira de uma nova fase, uma nova ordem internacional, as relações foram se aprofundando. Mas aí a gente tem que sentir que houve uma diferença neste pronunciamento. Quem acompanha a China sabe que palavras têm muito peso para eles e, desta vez, não foi mencionada uma relação sem limites. Ou seja, o governo chinês já recuou um passo do que vinha falando um ano atrás, quando parecia que Vladimir Putin ia ganhar essa guerra muito rapidamente e aí, sim, entraríamos em uma nova era. Não entramos, estamos no meio de uma transição que nós não sabemos para onde vai e quando termina.

O que não foi dito entre chineses e russos que pode sinalizar algo importante?
Por mais que o presidente Xi Jinping e Vladimir Putin não procurem dizer especialmente que essa relação é contra os Estados Unidos, efetivamente essa parceria é contra os EUA e contra todos esses princípios que mencionei. E, portanto, por mais que XI Jinping diga o contrário, caminhamos para um mundo com duas novas alianças formadas e que vão buscar acordos internacionais. É isso que nos interessa porque o Brasil, como um ator importante no mundo, vai ser disputado pelos dois lados. E nós temos interesses tanto do lado ocidental, americano-europeu, quanto do chinês, principalmente o agronegócio.

Que tipo de efeito a aproximação China e Rússia pode trazer ao agro?
Nesse primeiro momento, eu não vejo como deva ser afetado diretamente. A pressão sobre o Brasil, e não é só sobre o Brasil… O Brasil, como um grande país, grande economia e grande fornecedor de alimentos internacionais, o voto brasileiro sempre é importante para começar aqui pela América do Sul e para outros países, principalmente na África. Não esqueçamos que a África tem 54 países e, nos órgãos multilaterais, esses 54 países são disputadíssimos porque dão a legitimidade de qual lado tem mais apoio. Por isso, o voto brasileiro, cada vez que se tem uma discussão sobre a guerra na Ucrânia, é muito observado pelos dois lados e pelos outros países. Não acho que vamos sofrer algo agora porque, num momento em que há uma crise dos alimentos internacionais, o Brasil é um grande fornecedor, importante estabilizador desses preços internacionais. Qualquer problema que leve a uma falta dos nossos produtos nos mercados internacionais pode gerar crises políticas, como vimos em Blangladesh, no Peru e em vários outros países. Então, nosso voto nos órgãos multilaterais é importante. Portanto, não devemos sofrer. No entanto, não sabemos para onde o mundo vai e, consequentemente, as nossas exportações.

Nesta semana, ganhou destaque uma imagem de representantes da China ao lado do Irã e Arábia Saudita, que não possuem relações. O que isso significa?
Chamou a atenção de todos os analistas, principalmente aqueles que acompanham um pouco mais a região do Oriente Médio, porque a China nunca foi um grande ator na região. E um dos grandes pontos para alçar a China a um grande ator internacional, como verdadeiramente uma superpotência, fora o aspecto militar — que é essencial, e a China ainda não tem —, é conseguir resolver os problemas regionais pelo mundo afora. Conseguir fazer com que esses dois rivais regionais reestabeleçam relações diplomáticas, e numa cerimônia em que Pequim estava completamente fora do radar dos analistas internacionais. A China tenta se colocar como uma alternativa aos Estados Unidos, uma alternativa de quem consegue paz, não de quem fomenta a guerra. E isso acontece num momento em que os americanos, desde o governo [Barack] Obama, já colocam como principal estratégia se desacoplar do Oriente Médio para focar na Ásia, justamente para conter a ascensão chinesa. Quando analisamos o Oriente Médio, região importante para o mundo inteiro, porque é de lá que sai 40% do petróleo consumido todos os dias e que, portanto, pode jogar o preço do diesel, gasolina e de aviação nas nuvens, temos a China também como um ator. Não que os americanos desapareceram, mas deixou um pouco mais complicada a situação porque tem um novo interesse chinês.

Um estudo realizado pela Unicamp chamado “O Brasil Alimentará a China ou a China Engolirá o Brasil?” questiona nosso nível de dependência com os chineses. Se eventualmente a China decidir investir em outras economias agrícolas, ela poderia abandonar o Brasil?
Essa reflexão é importantíssima, mas vejo isso no médio e longo prazo porque é uma interdependência. Não há outros grandes produtores agrícolas, fora os EUA, pelos quais a China pode trocar o Brasil. E não vai trocar o Brasil pelos EUA, que é o maior adversário deles. Mas o governo chinês já vem preparando os governos africanos, principalmente no sul da África, [em países] que saíram de guerras civis que duraram décadas e estão começando a investir na produção de lá. Isso é que é a ameaça para o setor do agronegócio brasileiro no médio e longo prazo. Estou falando de 15 a 20 anos, mas que passa muito rápido. É algo em que o governo brasileiro e o agronegócio brasileiro têm que prestar atenção. Não podemos sentar em cima e falar que os chineses dependem da gente. Os chineses pensam no longuíssimo prazo, eles têm 5 mil anos de história.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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