‘Brecha está se criando entre Ucrânia e Ocidente’

Para professor do Ibmec, se contraofensiva ucraniana falhar, Ocidente pode diminuir suporte para focar em Taiwan, que começa a sentir o peso de uma possível invasão da China

  • Por Kellen Severo
  • 24/07/2023 10h00 - Atualizado em 24/07/2023 11h01
YASUYOSHI CHIBA / AFP russia ataca ucrania Um soldado ucraniano da 93ª brigada cobre os ouvidos enquanto dispara um morteiro rebocado francês de 120 mm (designado como MO-120-RT-61) em direção a posições russas em Bakhmut em 15 de fevereiro de 2023, em meio à invasão russa da Ucrânia.

A tensão aumentou na geopolítica após a Rússia anunciar na última semana que não iria renovar o acordo do Mar Negro e bombardear a estrutura de potos e armazéns de grãos da Ucrânia por quatro dias seguidos. Para o professor de relações internacionais do Ibmec, Carlo Cauti, se a contraofensiva da Ucrânia a partir de agora não for bem sucedida, é possível que os ucranianos percam parte do suporte do Ocidente. Segundo ele, há um certo “cansaço” por parte de líderes ocidentais. Além disso, há outras prioridades para os americanos, como a questão de Taiwan. A ilha vem sendo alvo de conflito entre China e EUA nos últimos meses e se torna mais importante que a guerra na Ucrânia, aponta Cauti.

Confira a conversa que tive com ele: 

Há alguma chance da Rússia voltar atrás e retomar o acordo do Mar Negro? Moscou já sinalizou que fecharia o tratado se as exigências fossem atendidas pelo Ocidente. Em uma negociação, tudo é possível. A questão é o que a Rússia está pedindo e quanto o Ocidente está disposto a ceder. Lembramos que esse acordo, ele foi alcançado logo após o começo da guerra graças à mediação da Turquia e das Nações Unidas e nada impediria uma volta desses dois atores à mesa de negociações junto com as duas partes para alcançar um novo acordo. A questão agora é que a Rússia hoje se sente legitimada demais pela situação no campo de batalha pelo fato de a contra ofensiva ucraniana não estar dando os resultados esperados no campo de batalha que o Ocidente esperava por um certo cansaço do Ocidente em apoiar o Zelensky. Os americanos estão dando sinais claros de uma certa falta de paciência, eu diria com o líder ucraniano. O próprio ministro da defesa do Reino Unido já falou abertamente e pediu para os ucranianos terem o mínimo de gratidão por tudo aquilo aquilo que o Ocidente já deu de armamentos para a Ucrânia e que o Reino Unido não é Amazon para entregar pacotes e armas dentro dos pacotes.

Então, Putin está com uma posição um pouco mais de força nesse momento e pode se permitir esse tipo de iniciativas. Até porque o próprio Zelensky está violando um acordo não escrito com os americanos que prevê que a Ucrânia não atacaria o território russo e os ucranianos estão fazendo isso com as armas ocidentais. Então há um momento muito conturbado na guerra e Putin está atuando justamente nessa brecha que está se criando entre Zelensky e o Ocidente.

No fim do mês passado, Putin sofreu um revés com aquela tentativa de rebelião do grupo Wagner. Agora ele sai do acordo e bombardeia portos ucranianos. O que isso tudo demonstra na sua opinião? É uma escalada da guerra? A guerra já está em uma fase quente já há muito tempo, não é um conflito de baixa intensidade como em outros lugares do mundo. Então a guerra continua sendo feita no campo de batalha todo dia na Ucrânia desde 24 de fevereiro de 2022. Então não mudou muito, vamos dizer assim. O que mudou é que Putin também deve demonstrar que ele ainda manda em Moscou porque mais do que um revés na tentativa da Wagner de tomar o poder, que fato é algo brancaleônico, era impossível chegar até Moscou com aqueles homens que a coluna da Wagner começou a se desmanchar ao longo do caminho. Mas, foi algo que colocou Putin em xeque porque muita gente em Moscou começou a questionar a permanência de Putin no poder ou pelo menos a raciocinar no pós Putin. Ele também é um ser humano, em um certo ponto ele vai falecer ou as forças vão diminuir. Ele já não é mais o líder absoluto como era antes. Então ele tem que demonstrar que ele ainda está no comando, que ele manda e está no controle da situação. Aí também, ele quer pressionar ainda mais a Ucrânia que está tentando ganhar algum tipo de posição, algum tipo de vantagem no campo de batalha durante o período do verão do hemisfério norte. Ou seja, de junho até setembro é o único momento que pode se levar adiante algum tipo de operação militar naquela região porque depois começa a chover e os tanques de guerra não conseguem transitar.

Putin está colocando pressão em cima da Ucrânia e colocando pressão em cima da comunidade internacional através dos grãos para tentar impor a Ucrânia a sentar na mesa e negociar, não digo uma paz, mas você sabe o que mantenha o status quo. Ou seja, a Rússia fica com a Crimeia, o Donbass e com a faixa que ocupa e a Ucrânia a gente vê o que faz.

Quais serão os próximos passos da guerra? Em função desse aquecimento do conflito, especialmente em questão de infraestrutura na Ucrânia, a gente viu o preço de trigo e do milho subindo. Para o público agro, a gente já está vendo os efeitos, ou seja, o preço das commodities está subindo. O grão e todas as outras ligadas, substitutas do grão já estão subindo desde o começo do mês na verdade, mas com mais intensidade nos últimos dias. Agora, os efeitos da guerra, qual serão? Se a contra ofensiva ucraniana que está sendo preparada há meses e graças também a enormes doações de material bélico do ocidente para Ucrânia, se essa contra ofensiva não alcançar nenhum resultado concreto, a guerra vai entrar aí sim entrar em um status quo provavelmente definitivo porque os americanos não estão mais dispostos, os europeus também acabaram com seus arsenais, com seus estoques para a Ucrânia e tem outras prioridades muito mais urgente, especialmente para os americanos, notadamente Taiwan. Então, para os americanos é a última chance da Ucrânia conseguir conquistar alguma coisa. Tudo aquilo que os ucranianos pediram, os americanos deram, inclusive bombas “cluster bombs”, que são até proibidas por tratados internacionais e que os americanos e ucranianos não não assinaram, mas os europeus sim. Então, tudo aquilo que os ucranianos pediram, foi fornecido. Se eles não conseguirem agora obter resultados tangíveis no campo de batalha, os americanos e europeus vão pedir para o Zelensky chegar a um modo de convivência com Putin mesmo aceitando perder parte do território nacional ucraniano, o que seria impossível para o Zelensky porque ele mesmo sofreria consequências e retaliações dentro da opinião pública ucraniana.

Então a guerra pode ir para uma situação de pacificação ou de estabilização no campo de batalha e continuar com uma convulsão social dentro da própria Ucrânia. Isso tudo seria até mais perigoso porque se existe uma probabilidade de ter um novo acordo no grão entre a Ucrânia e a Rússia mediado pela Turquia e pelas Nações Unidas, se começar uma civil na Ucrânia, aí não teremos mais acordo e não teremos nem mais grão porque não tem a capacidade possibilidade de semear nas áreas que são muito próximas no campo de batalha por sinal. Então vai ser um contexto muito complicado o que esperar nos próximos meses e com certeza o preço do grão vai aumentar.

Então se a contra ofensiva da Ucrânia não for bem sucedida, o senhor entende que a Rússia deverá ter uma vitória pela falta de suporte que a Ucrânia vai ter do Ocidente e também porque o Ocidente está olhando com preocupação para Taiwan, que começa a virar uma necessidade mais urgente do que esta guerra atual entre Rússia Ucrânia? Não seria uma vitória para a Rússia porque a Rússia queria muito mais. Seria um empate, vamos dizer assim. Claro que a Rússia ainda ocuparia território ucraniano, mas a Rússia queria ou retomar a Ucrânia inteira ou pelo menos mudar o governo da Ucrânia, isso era a ideia do começo da operação, tanto que a invasão ocorreu com apenas 150 mil homens, que é algo irrisório para o território gigantesco como o da Ucrânia. Então a Rússia queria uma operação cirúrgica para mudar o governo em que eventualmente exilar ou eliminar os Zelensky e os líderes ucranianos e voltar para casa. A Rússia foi obrigada a invadir a Ucrânia porque isso é um custo também. São custos de manutenção do território, custo de controle também das populações que não concordam com essa ocupação, entre outras coisas. Então, não seria uma vitória como a Rússia gostaria, mas com certeza seria uma derrota para a Ucrânia que perderia além da Crimeia, parte do seu território com maior recurso natural, especialmente mineral, com a maior capacidade industrial que representava 85% das exportações em termos de valor agregado da Ucrânia se tornaria da Rússia. Já hoje, a Rússia considera como parte do seu território nacional.

Então, se a guerra acabar assim, de fato teremos uma Ucrânia dividida na metade e um problema seríssimo dentro da Ucrânia porque há facções do governo craniano, por exemplo o batalhão ucraniano Azov, mas não somente ele, vários grupos nacionalistas que não aceitariam uma situação atual e gostariam de lutar até o fim. Só que o problema é que sem as armas ocidentais, eles podem bem pouco contra a Rússia. Então começa esse impasse e isso levaria para o problema dentro do próprio governo ucraniano.

A gente sabe que Taiwan está no centro das disputas entre Estados Unidos e China, mas me chamou atenção você dizer que o Ocidente “tiraria o pé” do apoio à Ucrânia neste conflito contra a Rússia porque precisa olhar com atenção para Taiwan. Nós estamos na iminência de uma invasão da China a Taiwan? Iminência eu não diria, porque quando se começa uma invasão, isso é evidente para todo mundo, como foi evidente no caso da Ucrânia porque o país que começa a invasão é obrigado a começar a coletar, a acumular armamentos e homens na fronteira. A Rússia fez isso antes da invasão em fevereiro do ano passado e a China ainda não fez isso. Até porque seria um custo muito elevado nesse momento para China invadir Taiwan, mas isso não significa que a China não desistiu de voltar a ter o controle em cima de Taiwan, que lembramos é considerado pelo governo chinês da China Continental, da China de Pequim como uma província rebelde e deve ser reenglobada na China, na República Popular  chinesa comunista a qualquer custo na paz ou eventualmente usando a violência.

Os americanos sabem disso e existe um programa de armamento, de reaparelhamento das forças armadas taiwanesas que é de longa data e com a guerra da Ucrânia, esse programa está atrasado pelo menos quatro anos porque as armas que iriam para Taiwan vão para a Ucrânia. Então ou vai para um ou vai para outro. Agora Taiwam está começando a sentir o peso dessa possível invasão chinesa que pode acontecer nos próximos meses ou anos. E para os americanos, a Ucrânia é algo de menor importância do que Taiwan porque se a Ucrânia cair, a Europa ainda está lá. Se Taiwan cair, a China vai ter acesso a todo o Oceano Pacífico. Taiwan é um escudo de fato que impede a China de se tornar uma potência marítima. Então, os americanos perderam a Ucrânia é tolerável, é aceitável. Ou pelo menos parte dela é aceitável. Perder Taiwan não é aceitável. Então por isso, a prioridade número um para os americanos porque o verdadeiro adversário hoje dos americanos, essa nova guerra fria, não é a Rússia. A Rússia é uma potência de série B, ela tem um PIB menor do que a Espanha. O verdadeiro inimigo, o verdadeiro adversário é a China. Então, é por isso que os americanos, suas armas e também a sua energia, a sua atenção, os seus recursos econômicos para o verdadeiro campo de batalha, que vai decidir quem será o número um do mundo. Se continuará sendo os americanos ou a China.

É uma questão de tempo para a gente ver uma invasão da China a Taiwan ou você acha que em alguma medida isso pode não acontecer? Depende muito. Depende da situação interna na China, Depende de como a economia chinesa vai reagir nos próximos anos. Se Xi Jinping se encontrar encurralado, numa situação econômica complicada, por uma situação demográfica também complicada e protestos internos, ele vai usar a arma, a cartada do nacionalismo e vai denotar toda essa energia interna para Taiwan. Se a economia voltar a crescer, aí teremos outro desfecho dessa história.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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