Era de ouro entre Brasil e União Europeia acabou?

Exportações do agro para o bloco caíram de 21,7% para 16,1% em dez anos

  • Por Kellen Severo
  • 19/06/2023 09h26 - Atualizado em 19/06/2023 15h17
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Ricardo Stuckert/PR/Divulgação Ursula Von der Leyn e Lula posam com as mãos entrelaçadas; atrás, as bandeiras do Brasil e da União Europeia Lula se reuniu na semana passada com Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia

A visita da presidente da Comissão Europeia ao Brasil na última semana voltou a colocar o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia no centro das atenções. Ao mesmo tempo em que os europeus sinalizam que querem fechar o tratado até o fim deste ano, há uma série de exigências ambientais sendo criadas para os exportadores de alimentos ao bloco. Dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) revelam que a UE perdeu relevância nas exportações do agro. Nossos embarques ao bloco caíram de 21,7%, em 2012, para 16,1%, no último ano. O que esperar do acordo Mercosul-UE? A era de ouro nas relações entre brasileiros e europeus acabou? Confira a conversa que tive com o diretor de estratégia da Arko Advice, Thiago de Aragão, sobre o tema.

Teremos a assinatura do acordo comercial entre Mercosul e UE ainda neste ano? A relação de ouro entre os dois blocos ficou para trás?
Primeiro que eu não vejo uma unidade de visão e percepção entre os europeus. Existem inúmeros interesses distintos entre eles e, por mais que conseguiram apresentar uma visão de uma proposta que pode ser feita com o Brasil, no fim das contas existem alguns países que não têm tanto interesse em avançar quanto outros. A França, por exemplo: é notório que o posicionamento dos fazendeiros franceses ao longo dos últimos anos tem sido o de dificultar um relacionamento entre União Europeia e Mercosul, e é compreensível ao lado deles até porque eles percebem que o Brasil pode acabar prejudicando a capacidade que eles têm de dominar determinados setores do mercado. O pulo do gato que foi a grande sacada do governo francês e que acaba se expandindo um pouco para outros governos é vincular os temas ambientais. Obviamente, eles não levam em consideração que o Brasil tem regras de tratamentos e cuidados ambientais que são muito mais avançados do que os de diversos países europeus, inclusive a França. Quando se trata e coloca um assunto desse como condicionante para um acordo, cria-se uma situação assimétrica entre os sócios. Ou seja, não há mais sociedade. O que existe é uma relação entre um acima e outro abaixo. Isso explica porque o percentual de comércio entre Brasil e União Europeia tem diminuído de 2012 para cá.

Nesta semana, o jornal “Financial Times” destacou que agricultores franceses estão reduzindo os preços dos alimentos por conta da pressão do governo, que tem o objetivo de reduzir a inflação. O que está acontecendo na Europa?
Isso que foi noticiado pelo “Financial Times” acaba explicando metade da história porque toda a negociação tem compromissos feitos pelos dois lados. Então, não é nenhuma coincidência que a União Europeia, nas últimas semanas, colocou novas cláusulas de negociação com o Brasil, que acabam dificultando e eventualmente até punindo o Brasil por questões que não estão diretamente relacionadas ao acordo em si e acabam prejudicando a assinatura pelo lado do Mercosul. Se os fazendeiros franceses estão abrindo mão de reajustar seus preços por conta da inflação no país, o lado do governo aceitou a narrativa dos franceses de colocar um pé no freio na formalização de um acordo com o Mercosul. A questão da inflação está alta porque, no início da guerra na Ucrânia, um volume de trigo passou a ser isolado do mercado que era exportado a partir da Ucrânia, criando uma inflação em cima desse grão. Isso acaba se estendendo para outras commodities que acabam afetando e gerando inflação e afeta os fazendeiros franceses. Eu não vejo até o final do ano uma solução clara num acordo entre Mercosul e União Europeia até que a situação doméstica, como na França, se solucione por questões inflacionárias que são decorrentes de temas terceiros, como a guerra na Ucrânia.

É precipitado concluir que a relação de ouro entre Brasil e Europa já ficou para trás?
Eu acho que sim, já ficou para trás. Pode nascer uma outra era de ouro na relação entre Brasil e Europa. Agora, o próprio momento de ouro da União Europeia entre os seus membros também parece que já vem passando. Isso começa desde a saída do Reino Unido até uma dificuldade de se gerar uma linha comum entre todos os membros. À medida que o mundo vai se dividindo numa questão baseada nas tensões entre Estados Unidos e China — e isso começa a criar novos blocos de, pelo menos, apoio e influência geopolítica entre um e outro —, acaba também gerando uma sequência de sentimentos nacionalistas em todo mundo. A gente vê a Hungria, por exemplo. A Hungria do Viktor Orbán tem um sentimento nacionalista muito mais forte do que um sentimento europeu, por mais que faça parte da União Europeia. Então, a era de ouro da própria União Europeia também é algo que já está para trás.

A União Europeia e o Chile concordaram em fechar uma parceria em relação ao lítio, elemento fundamental para a fabricação de baterias para veículos elétricos. O Chile é responsável por 34% da produção mundial de lítio. O que a Europa está buscando aqui na América Latina?
É absolutamente importante, não só para quem lida com comércio exterior, ou para quem acompanha tecnologia ou relações internacionais. O lítio hoje é o minério mais importante do planeta. E isso coloca o Chile, a Argentina e outros países numa condição de importância estratégica como esses países nunca tiveram. Como existe uma corrida entre alguns países para garantir acesso às poucas minas de lítio o que existem no mundo e, principalmente, as que estão concentradas no Chile, na Argentina e na Bolívia. A Bolívia não começou o processo deles de exploração, mas, principalmente no Chile e na Argentina. O que a União Europeia está fazendo? Ela está correndo, se adiantando para evitar que o controle das principais minas de lítio ou de exploração das principais minas de lítio no Chile caia nas mãos dos chineses. Porque hoje, com a concentração do processo de fabricação de baterias (seja para painéis solares, turbinas eólicas ou baterias de veículos elétricos para mil outras utilidades), a China hoje tem um controle quase que absoluto da cadeia. A partir do momento em que tem o controle da cadeia, ela tem uma capacidade de influenciar diretamente a capacidade industrial e a economia de inúmeros países no mundo, que são e serão cada vez mais dependentes nos produtos derivados do lítio. Então, a partir do momento em que a União Europeia faz um acordo desse com o Chile, está garantindo um fluxo próprio de lítio para dissociar e diluir um pouco da dependência que tem da Chin. Esse foi um movimento muito importante e muito interessante pelos europeus.

Por que o agronegócio precisa prestar atenção em tudo o que está acontecendo e que a gente trouxe aqui na pauta? Quais são os pontos mais relevantes de conexão?
O agronegócio, principalmente o agronegócio brasileiro, é altamente sofisticado, tecnologicamente falando. O nosso agronegócio se tornou o mais poderoso do mundo pela nossa capacidade, não só de gestão e de ambiente fértil, mas de unir ciência e tecnologia dentro do processo de gerar, plantar e colher. A partir do momento que o Brasil tem um papel muito importante, não só na produção agro, mas também na utilização de tecnologia na área agro, é imperativo que o país observe como que os outros países que estão diretamente ligados, seja como fornecedores dessas tecnologias, seja como compradores do produto é final, como que eles interagem entre si. O que isso pode indicar para muitos produtores as dificuldades e oportunidades de curto, médio e longo prazo por conta desses relacionamentos entre os países. Se a partir de amanhã a China garantir o acesso a enorme maioria de minas de lítio no mundo, nós vamos ter plena consciência de que a ela vai ter um controle na formulação e criação de baterias e, consequentemente, vai poder colocar o preço que quer em veículos elétricos ou outras tecnologias que utilizam essas baterias. Isso acaba afetando o agro e todas as áreas de logística de exportação também

O que você vê de mais urgente?
Eu acho interessante para o produtor brasileiro sempre estudar a capacidade e a possibilidade de diversificação. A gente tem uma ideia às vezes errada sobre dependência. A dependência não é só de quem compra 100% do produto que você faz, mas a dependência maior nesse relacionamento é sua de vender 100% do seu produto para um comprador. A partir do momento que existe essa dependência, aquelas decisões e o posicionamento do seu comprador no país deles tende a ter mais impacto para o seu negócio do que as decisões que são tomadas em Brasília. Então, para o produtor brasileiro, é absolutamente imperativo não só compreender a fundo como são seus compradores, mas também buscar uma diversificação cada vez maior no seu portfólio.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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