A vida do brasileiro melhorou muito em meio século de cambalhotas, apesar de tudo
Temos uma legião vergonhosa de desempregados e uma das taxas de juros mais elevadas do mundo, mas, quando comparamos com a vida do brasileiro de cinco ou seis décadas atrás, parece que vivemos num paraíso
Faz 50 anos que me formei em ciências econômicas. Durante a faculdade, um dos pilares do nosso aprendizado sobre a situação dos países emergentes era o livro Os países subdesenvolvidos, de Yves Lacoste, publicado em 1961. Um livrinho de 136 páginas que devorávamos nos diversos anos da vida acadêmica, discutindo como nações em desenvolvimento poderiam trilhar o caminho para sair do atraso.
Naquela época, o Brasil de 1974 era um país em seus primeiros passos rumo à modernização. Hoje, em 2024, apesar de todos os erros cometidos, vivemos tempos de paradoxos e desenvolvimento. Foram cinco décadas de avanços, tropeços e muitas cambalhotas que moldaram o país em que vivemos.
Como era a comunicação nos anos 60?
Não tínhamos estradas de qualidade. Fazer uma viagem de duas ou três centenas de quilômetros era uma aventura que consumia um dia inteiro. A comunicação era pouco mais que “tambores na selva” ou “sinais de fumaça”. Na Grande São Paulo, por exemplo, para chamar uma cidade próxima, pedíamos a ligação pela manhã, mas a telefonista só completava à tarde.
As pessoas eram divididas entre aquelas “que podiam” e as “que não podiam”. Com classe média inexpressiva, poucas famílias “podiam”; a maioria “não podia”. Aquelas que podiam tinham televisor preto e branco para assistir a programas rudimentares. As que não podiam carregavam as cadeiras até a casa de um vizinho para assistir à interminável novela O Direito de Nascer.
Um país dividido entre ‘quem pode’ e ‘quem não pode’
Quem podia, viajava. Quem não podia conhecia outros países apenas pelos filmes no cinema. Quem podia, estudava, e, se pudesse muito, concluía uma das três faculdades de maior prestígio: direito, medicina, engenharia. E virava doutor. Quem não podia engrossava a massa de analfabetos, que girava entre 30% e 40%. Mesmo os alfabetizados paravam nos primeiros anos escolares.
Quantos meninos e meninas da mesma família precisavam estudar em horários diferentes! Como só possuíam um uniforme e um par de sapatos, quem estudava à tarde esperava a roupa do irmãozinho que ia para a escola de manhã. Quem não viveu essa época pode achar que essas histórias são fantasiosas, mas era exatamente assim.
Como saímos do atraso?
Como, mesmo com tantos desacertos, o país conseguiu colocar a cabeça para fora? Afinal, fomos comandados por governos militares, depois por autoridades eleitas pelos brasileiros, algumas incompetentes, duas delas impichadas. Enfrentamos planos econômicos desastrosos e, após 13 tentativas fracassadas, finalmente acertamos na 14ª com o Plano Real. Tivemos ainda uma dívida externa considerada “impagável”, em tempos em que “era preciso vender o almoço para comprar o jantar”.
Hoje reclamamos, e com razão, da situação lamentável em que vivemos quando nos comparamos a outros países. Ficamos na rabeira dos rankings educacionais, atrás de nações consideradas pobres e de terceiro mundo.
Os desafios de hoje
Temos uma legião vergonhosa de desempregados — de fato desempregados, não aqueles mascarados por indicadores enganosos que não consideram as pessoas que deixaram de procurar emprego ou que vivem de auxílios de bolsas do governo. Temos uma das taxas de juros mais elevadas do mundo, uma taxa de inflação que escapa do controle, uma moeda que bate recordes de desvalorização.
Sim, enfrentamos todos esses problemas. Quando comparamos, todavia, com a vida do brasileiro de cinco ou seis décadas atrás, parece que vivemos num paraíso. Hoje temos mais celulares do que habitantes. E viajar 200 quilômetros em três horas é algo que nem podíamos imaginar no passado.
Entre altos e baixos
Entre altos e baixos, quando os governos são bons gestores, muitos viajam, ainda que com passagens financiadas. Frequentam faculdades com tantas opções de cursos que nem as próprias instituições se dão conta. E, em períodos de vacas gordas, comem até picanha e tomam cerveja geladinha.
Como disse Edmund Burke: “Um Estado que não tem os meios de alguma mudança não tem os meios de sua conservação”. Foi com pequenas transformações, e não com rupturas, ao longo do tempo, que avançamos como nação, mesmo que aos trancos e barrancos.
E o futuro?
Pois é, poderíamos estar em situação muito melhor ao nos compararmos com outros países emergentes. Quando olhamos para trás, entretanto, e vemos como éramos, com todas as dificuldades próprias de quem não podia, sentimos que a nossa vida é outra, muito melhor.
Há uma camada da população que ainda precisa ascender a níveis mais elevados de qualidade de vida. Para isso, temos que contar com gestores competentes, que tenham em sua administração uma visão de estadistas, que promovam políticas de Estado e não de Governo.
O filósofo Zeca pagodinho
Como Alexis de Tocqueville afirmou: “A grandeza das democracias não está em garantir a igualdade absoluta, mas em reduzir desigualdades sem sacrificar a liberdade”. Cabe a nós cobrarmos essa postura de quem nos governa.
Como cada povo tem o governo que merece, nossa evolução como sociedade aponta para um futuro de governantes mais à altura de um povo que está se tornando melhor. E para matar a saudade do velho e bom livro do Lacoste, nada como usar uma de suas últimas lições na obra: “Cada povo deve traçar seu próprio caminho, cada um deve procurar a via para o desenvolvimento”.
É verdade, como canta Zeca Pagodinho: “Tá ruim, mas tá bom”. Talvez o Brasil esteja apenas no meio de sua jornada para se tornar o país que sonhamos — aquele em que a frase final será simplesmente: “Tá bom”. Siga pelo Instagram: @polito.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
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