Como as ditaduras nascem
Hoje sentimos calafrio após criticar o governo e o STF; poucos sintomas são mais significativos que esse para identificar o nascimento de uma ditadura
Assistimos anestesiados e amedrontados, dia após dia, ao descalabro da liberdade no Brasil ‒ em todas as suas identidades e atuações ‒, e, ao contrário de muitos dos comentaristas políticos que rondam as redes, ao menos desde 2021 sou categórico ao dizer que o que o STF faz, principalmente Alexandre de Moraes, é autoritarismo puro, uma atuação ditatorial em seu sentido mais direto. Perceber e denominar, analisar e diagnosticar tais atos, frutos de um doentio autoritarismo jurídico, não é difícil, mas se tornou penoso e até perigoso. Hoje sentimos o calafrio e a estafante sensação de abafamento autoritário após criticar o governo e o STF ‒ poucos sintomas são mais significativos que esse para identificar o nascimento de uma ditadura. Quem pode plenamente negar que, atualmente, criticar Alexandre de Moraes nas redes sociais é tão perigoso quanto insultar publicamente um traficante ou miliciano; esse medo de opinar criticamente, guardadas as devidas proporções, é fruto do mesmo câncer político que abateu tantos países do século XX no Leste Europeu, e agora o sentimos aqui mesmo no Brasil.
No dia 3 janeiro, o portal Metrópoles noticiou mais um golpe de morte de Alexandre de Moraes na liberdade e no Estado democrático de direito. O jornalista Rodrigo Rangel noticiou que, em 12 de dezembro do ano passado, o ministro autoritário do STF pediu a quebra de sigilo telefônico de mais oito investigados em seu inquérito stalinista. A novidade, no entanto, está no fato de que, no seu despacho, ele ordena que todos aqueles que mantiveram contato com esses oito investigados também tenham suas privacidades e liberdades trucidadas. Isso inclui desde a tia do acusado até o seu advogado. Nunca, após a dita “redemocratização”, tivemos um ato tão descaradamente ditatorial como esse. Pergunto sinceramente aos “especialistas” que nossa grande mídia tanto gosta de consultar: o que resta para termos uma Stasi para chamar de nossa? Será que, nas réguas científicas desses especialistas, há uma distância tão grande assim do atual Brasil para uma ditadura em seu sentido mais explícito?
Alguns amigos já vieram me questionar sobre as consequências desse novo despacho soviético de Moraes, outros me perguntaram ainda como ficará a segurança jurídica no país. E é justamente aqui que devemos nos deter para analisar o motivo de não podermos mais plenamente chamar o Brasil de “democracia”. Sim, temo não estarmos mais sob o teto frágil da liberdade democrática, e quero explicar o porquê. Sou enfático ‒ há tempos ‒ ao afirmar que não somos mais uma democracia, ao menos não plenamente. As ditaduras modernas podem ser veladas ‒ guardarem certas características de democracia a fim de aliviar penalizações e sanções exteriores ‒ ou descaradas, abertamente despóticas; no entanto, seus inícios são relativamente iguais, e por isso podemos notar como já deixamos ‒ ou estamos em via de deixar ‒ de ser uma democracia real.
Antes, é bom pontuar, que aquele tipo de ditadura de tomada violenta do poder estatal, tal como foi na Rússia, em 1917, ou em Cuba, em 1959, simplesmente não é mais viável. É economicamente cara, mortalmente difícil e cada dia mais impopular. Assim sendo, desde a teoria crítica da Escola de Frankfurt e os cadernos de Antonio Gramsci, a esquerda notou que uma revolução silenciosa e de destruição gradual dos valores ocidentais seria não somente mais eficiente e menos custosa, como também muito mais duradoura. Todas as ditaduras modernas ou contemporâneas minam duas pilastras básicas da democracia para instalarem seu autoritarismo do bem: a cultura de liberdade da população e a segurança jurídica do Estado. Por vezes, começam destruindo a cultura, em outros momentos, a segurança jurídica, no entanto, esses sempre são seus alvos principais e iniciais. A cultura de liberdade nada mais é do que a mentalidade comum que através da tradição histórica ‒ ou a partir de percepções naturais ‒ adquiriu um apreço pela autonomia social, pela liberdade de expressão, culto e movimento, tornando, assim, uma ética social perene. E, desde o advento do Iluminismo, por se basearem constantemente nesses valores éticos para produzirem suas culturas, arregimentaram suas conquistas, famílias e economias, os indivíduos organicamente se envolvem em uma sociedade liberal, onde a liberdade de expressão e livre associação se tornam normalmente apreciadas, um bem tão comum e basilar que, poucas vezes, são percebidas para além do senso comum.
E assim parece ser para além da retórica libertária, pois trocamos mensagens no WhatsApp, nos expressamos publicamente no Twitter ou Instagram, fazemos planos de viagens e criticamos políticos, convictos de que exerceremos esses princípios de liberdade sem sermos coagidos ou constrangidos. A modernidade e sua democracia unanimemente adotaram a liberdade como essência estruturante, algo que é inseparável de seu funcionamento e existência. Por isso mesmo que atacar as liberdades individuais é, ao mesmo tempo, atacar a democracia e os princípios ocidentais. No entanto, como bem sinalizou Moisés, nas “tábuas da lei”, e Thomas Hobbes, em seus escritos do século XVII, valores abstratos, não constituídos, são um convite pleno à burla do tirano; por isso que se tornou costume no Ocidente assegurar juridicamente tais valores em uma espécie de contrato social que corta a sociedade desde o rei até o lumpemproletariado, onde todos que vivem em determinada localidade são obrigados a respeitarem determinados valores comuns. Grosso modo, isso é a tal da segurança jurídica: a certeza comum de que nossos direitos e deveres estão assegurados sob uma resguardada norma jurídica anuída por um composto jurídico competente e jurisprudenciado do Estado.
Todavia, se desacreditamos a cultura de apreço à liberdade e corroermos a estrutura jurídica que mantém tais direitos vigentes, cairemos no pântano do velho autoritarismo, onde a única lei é aquela promulgada por quem tem mais poder. A democracia, assim, tem como fundamento o Estado constituído sob essas leis de segurança e valores primordiais, bem como sob a crença comum de respeito às liberdades básicas do indivíduo e defesa da Constituição. Logo, se não temos mais esses pilares básicos, ou se eles já estão profundamente carcomidos, falar em democracia não passa de um simbolismo tolo vivificado por discursos que, no bafo, tentam emplacar alguma esperança utópica de democracia onde só se acha o lodo do autoritarismo real. Dessa forma, com a decisão de Morais, do último dia 12, temos o golpe final nos valores que sustentam a democracia brasileira. Numa só marretada ditatorial, ele conseguiu demolir a percepção social de liberdade e a crença de que ela é respeitada e garantida pela Constituição. Aquilo que até pouco tempo chamaríamos de “direito inviolável” ou “sagrado”, tornou-se mais profano que lençol de motel barato. Hoje a privacidade e a possibilidade de livre criticar dos brasileiros, por exemplo, estão todas sob a jurisdição de um único homem. A simples crítica numa rede social será ferrenhamente rastreada por um ministério de governo; sem falar dos jornalistas, manifestantes e até comediantes que já são perseguidos pela Suprema Corte nacional.
Alguns cientistas políticos polidos dirão que o Congresso está aberto e em funcionamento, que a Constituição ainda se encontra promulgada e que o Estado está em pleno funcionamento institucional programado; ao qual eu questiono sinceramente: “e daí”? Um corpo aparentemente sadio pode encubar cânceres que o matarão em meses. Há dez meses meu tio estava sadio em casa, comendo churrasco e se divertindo com seu neto. Oito meses depois ele se encontra num caixão no cemitério de Juiz de Fora. A sua médica disse à família algo realmente intrigante, principalmente se estivermos fazendo esse paralelo que agora estamos tentando: o câncer que o matou estava em seu corpo há anos, mas naquele estágio em que foi descoberto, para salvá-lo, já era tarde demais. As democracias geralmente morrem assim, de doenças que já estão nelas, que se manifestam por etapas sutis, tão sutis que o hospedeiro, por lerdeza, leniência ou burrice, não percebe o mal que cresce dentro dele. Como disse Naill Ferguson em Civilização: Ocidente x Oriente: “Hoje, como na época, a maior ameaça à civilização ocidental vem não de outras civilizações, e sim de nossa própria pusilanimidade ‒ e da ignorância histórica que a alimenta”. As democracias modernas constantemente morrem desse “tarde demais”, e temo que a nossa também esteja nesse caminho nefasto. Estamos assistindo inertes às nossas liberdades sendo solapadas, à Constituição e aos demais códigos sendo vilipendiados em nome de um plano de poder, em nome de uma ideologia.
Fato é que, hoje, não consigo ter uma leitura otimista de nosso futuro: a mídia tradicional varia entre seus falsos arroubos de “susto” com relação às decisões de Moraes ou o mero pentear retórico de sempre para justificar as investidas do juiz soviético; a população está assustada e paralisada demais para reagir com vivacidade e efetividade; as Forças Armadas estão todas tremendo e se escondendo debaixo de seus cobertores camuflados a fim de não arranharem suas imagens institucionais. Se há esperança, essa vem do Congresso conservador que foi eleito, resta saber se terão aquela verve de estadistas para fazerem o que é certo em tempo hábil, de peitarem o tirano e sua tirania enquanto há tempo. Sabe o que deve torturar dia e noite os antigos congressistas venezuelanos, aqueles que estavam exercendo seus mandatos antes da derrocada bolivariana, o fato de não terem agido rapidamente. Minha leitura atual continua sendo crua e direta, apesar de pessimista e até mesmo trágica neste instante: nossa democracia morrerá de “tarde demais” em alguns meses se algo não for feito agora.
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