Desistir como Simone Biles é do jogo, mas celebrar a desistência é glorificar a fraqueza

Aqueles que saudaram a saída da atleta das Olimpíadas traduzem o vitimismo da nossa atual geração, cujo mérito maior é querer colocar seu sofrimento como conquista

  • Por Adrilles Jorge
  • 31/07/2021 10h00 - Atualizado em 01/08/2021 12h31
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Reprodução/ Instagram Simone Biles olhando para baixo em roupa de ginástica Priorizando sua saúde mental, Simone Biles não disputou a final do individual geral da ginástica

A vida é competição e solidariedade. Competição para saber quem tem o melhor trabalho e mérito para fazer o bem coletivo. Ganha o melhor trabalhador que vence em nome do trabalho pelo próximo. Na competição justa, todos ganham. Os mais fortes trabalham pelos mais fracos em alguma área. Em outra, alguém mais fraco pode ser mais forte e te ajudar. Um intelectual ajuda um boxeador a pensar melhor com seus textos. Um boxeador pode ajudar um intelectual a se defender fisicamente. Um grande empresário supera seus competidores gerando empregos para milhares de pessoas em seu ramo. Enfim: competimos em alguma área para sermos melhores para ajudarmos outras pessoas em diversas áreas. Sem competição, nivelando todo mundo, nos prejudicamos, porque não exploramos nossas melhoras virtudes e talentos. A não competição, baseada em falsa solidariedade, é um forma perversa de não nos ajudarmos.

Esporte, por exemplo, é competição pura — tradução da competição da vida individual ou em equipe em nome do coletivo. Quando um atleta, por vitimismo ultrassensível ou outra razão, desiste porque “foi pressionado”, deixa de merecer competir. Como alguém que desiste de competir e trabalhar na vida pelos outros. Recentemente, a atleta premiada Simone Biles desistiu de competir em cima da hora em uma prova importante para a sua equipe. Alegou “não estar se divertindo mais” e problemas de saúde mental. Simone passou por maus bocados e pressões várias vezes na vida e no esporte. Não merece, claro, ser crucificada por sua desistência. O problema é que foi celebrada por isto. A nota do Comitê Olímpico diz que, “após uma avaliação médica adicional, Simone Biles retirou-se da competição individual geral final. Apoiamos de todo o coração a decisão de Simone e aplaudimos sua bravura em priorizar seu bem-estar. Sua coragem mostra, mais uma vez, por que ela é um modelo para tantos.”

Não dá pra entrar a fundo nas razões da desistência da atleta. Mas não dá pra parabenizar alguém por uma desistência. Milhares de atletas queriam estar no lugar de Simone. Muitas dariam o sangue por estarem ali naquele momento. Desistir é do jogo. Mas saudar e glorificar a desistência é um sintoma estranho que talvez traduza o vitimismo de nossa atual geração, cujo mérito maior é querer colocar seu sofrimento como conquista. A ação é um mérito — no esporte e na vida. Chorar por si mesmo não. Perder lutando num sonho a ser conquistado é um mérito. Desistir não. No esporte, como na vida, o sacrifício é o mérito. A superação de obstáculos, quer seja a depressão, um trauma, um pé quebrado, uma alma quebrada, é o destino de todo ser humano, seja herói ou uma pessoa comum. Persegue-se o melhor: o sacrifício em nome do sentido maior da vida, o sacrifício pelo outro. Um médico dá seu melhor para salvar uma vida. A cura de sua angústia é seu trabalho pelo outro. Um médico se esforça para ser o melhor em sua área, para dar o melhor de si em nome do outro. Imagine se médicos fossem aplaudidos por uma desistência em meio a uma cirurgia alegando estresse mental.

Havia milhares de atletas que queriam estar no lugar de Simone. Ela poderia não ir por não estar “se divertindo mais”, como alegou. Em sua defesa, disse não estar apta a dar o melhor de si. Mas o melhor de si é sempre tentar. A perfeição do ato do atleta, ou do trabalhador, ou do pai, ou do irmão, ou do amigo ou de toda pessoa que faz algo em prol do outro, é sempre tentar. Desistir, mais uma vez, é do jogo. Mas não é mérito a ser louvado. O foco, reitero, não é a desistência de Simone. É a celebração de sua desistência. Uma nova geração se forma com uma espécie de ultrassensibilidade. A vida é dura em todas as áreas. Ter sensibilidade não é fazer elogios da desistência ou da própria capacidade de sentir pena de si mesmo. A depressão, o mal do século, é sintoma desta ultrassensibilidade contemporânea. Um deprimido desiste de viver. Um deprimido é um narciso contrariado, para além de causas biológicas, porque deixa de enxergar que sua ação em nome da ajuda a alguém gera o sentido de vida, que lhe escapa ao apenas olhar para o espelho de sua angústia.

Simone tem e terá todo o direito de desistir de tudo quando e como quiser. Mas uma sociedade que elogia uma desistência está fadada a fracassar sem lutar. E perder lutando é digno. Que o diga Cristo, que morreu lutando, nunca desistiu, e fez de sua aparente derrota a maior vitória da cultura ocidental através de sua misericórdia. Tenho misericórdia por Simone, mas não dos que celebram sua desistência. Estes fazem mal a ela e a toda uma sociedade depressiva que tem desistido de viver em nome de sua ultrassensibilidade e inércia. A vida é ação. É trabalho. É competição para saber quem melhor melhora a vida do outro. Não desista. Vale a pena.

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