A crítica de Paulo Guedes ao FMI e a lógica clássica de Aristóteles
Em tempos de guerra política, quem não vê lógica onde tudo é coração tende a se afogar num mar de equívocos
O jornalismo não necessariamente informa. Desde seu estabelecimento em fins do século XVIII até o presente, ele funciona também como tanque de guerra apontado a adversários políticos. O acordo entre o governo Bolsonaro e o FMI visando o encerramento das atividades do escritório do Fundo aqui no Brasil mostram esse aspecto muito bem. Alguns jornais contam o ocorrido prezando a ordem dos fatos. Outros narram o evento torcendo a ordem de causalidade de modo a fazer brotar no leitor sentimentos específicos sobre a notícia. Vamos aos exemplos oportunos. Dizer “o FMI anuncia fechamento do escritório após críticas de Guedes” é um modo de sugerir que tais críticas motivaram o ato. O mesmo ocorre numa manchete apontando que “criticado por Guedes, FMI diz que fechará escritório no Brasil em 2022”. Mais uma vez, é a causalidade invertida que se sugere numa manchete de tipo “alvo de críticas de Guedes, FMI anuncia fechamento de escritório no Brasil”. Quando se apresenta o evento desta maneira, usando um fraseado que sugere relação condicional entre as críticas de Paulo Guedes e o fechamento do escritório, o resultado é despertar no leitor a impressão que a declaração do ministro gerou desconforto no FMI, o qual, por consequência, anunciou encerramento das atividades no Brasil.
Vamos agora à informação fria. O escritório do FMI no Brasil, cuja missão principal é “monitorar as condições econômicas e a estabilidade do sistema financeiro”, errou feio numa projeção divulgada ano passado, prevendo queda de mais de 9% no PIB em razão da pandemia. O IBGE, por sua vez, estimou a queda em 3,9%. Esse monitoramento para lá de impreciso está na origem das críticas de Paulo Guedes. Ademais, o Ministério da Economia avalia a representação brasileira do Fundo como obsoleta, uma vez que ele mantém escritórios em países com os quais tenha algum programa ativo, o que não ocorre por aqui desde 2005. Na prática, o escritório já não tinha função no Brasil, razão pela qual havia meses que a decisão era cogitada. Bem, e após uma previsão tão furada, a oportunidade para bater o martelo veio de bandeja.
Daí que faz muito mais sentido resumir o acontecido afirmando que “Guedes dispensou o FMI no Brasil”, manchete formulada pela redação da Jovem Pan, por exemplo. Mas esse título não necessariamente desperta no leitor a impressão de que o ministro Paulo Guedes seja um descabeçado que gerou repulsa no coração puro do magnânimo FMI. Ao apresentar a informação respeitando a lógica dos fatos, o leitor acaba interpretando que o FMI se mostrou ineficaz em sua missão e o ministro agiu de modo a dispensar seus maus serviços. No máximo, uma manchete assim causará sentimento de surpresa no leitor, que talvez se pergunte por que o escritório ainda estava aqui.
Há mais de 2 mil anos, o filósofo grego Aristóteles sistematizou a Lógica, ciência do discurso preciso, a fim de estabelecer um método capaz de nos ajudar a diferenciar o uso correto da linguagem de uso enviesado e motivado por intenções ocultas, costurado com falácias capazes de induzir o leitor ou ouvinte ao erro. Ela permanece perfeitamente atual. Em nossa análise, colocar lado a lado numa manchete dois fatos associados, mas sugerindo uma ordem temporal contrária à factual, é dessas falácias que, se não funcionam com os leitores atentos, pegam em cheio os desprevenidos. Persuadir o ouvinte não é o mesmo que informá-lo, independentemente do fato que se tenha à mesa. Em tempos de guerra política, quem não vê lógica onde tudo é coração corre o risco de afogar-se num mar de equívocos.
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