Condenar a série ‘Friends’ por machismo, homofobia ou misoginia é absolutamente injusto
Segundo os militantes em prol dos bons costumes, ‘Friends, The Reunion’ peca pela falta de diversidade; seriado, porém, abordou temas polêmicos para a época e que até hoje estão em pauta
A série Friends, lançada nos Estados Unidos em 1994 e que permaneceu com novos episódios até 2004, marcou a época e surgiu em um tempo livre das implicâncias dos ditos politicamente corretos, que hoje enxergam fantasmas da discriminação se as cenas não forem compostas pelos mais diferentes fenótipos, opções sexuais, cores de pele e tantas outras “marcas” desses tribunais da verdade. Os adoradores de Friends, por outro lado, rebatem as críticas e defendem a série que, para eles, trata de temas que continuam em pauta como traições, relacionamentos e família. Mas, como de costume, “a turma do contra” decidiu intervir em favor, segundo eles, da defesa da “moral e dos bons costumes”.
No ano de 2020, a série foi retirada da Netflix, mas seu retorno está previsto para este ano, em um novo formato. Em lugar dos costumeiros episódios, o elenco se reúne em Friends, The Reunion, na HBO MAX, que também deixará disponíveis todos os episódios para quem quiser rever ou assistir ao seriado pela primeira vez. Nesse novo formato, os atores falam sobre os episódios que interpretaram no passado. Diante do anúncio que fará reviver cenas gravadas há 27 anos, os pretensos “canceladores” alegam que se trata de um seriado machista, homofóbico e misógino, além de apontarem a falta de personagens negros. Isso me faz pensar que a pandemia trouxe com ela uma doença tão ou mais grave que o coronavírus: o julgamento de questões que surgiram de forma leve e despida de segundas intenções, e que hoje se transformam em ameaça para a moralidade de toda uma sociedade, cansada de cortes e punições provenientes de uma censura descabida e retrógrada.
Para esses julgadores, críticos ao universo de Friends, tudo começou com Ross, personagem de David Schwimmer, considerado por muitos como “boy lixo”, por ter um comportamento ciumento e possessivo. Isso leva em conta pequenos gatilhos do roteiro, que tomaram um vulto estrondoso, mas que, na época, faziam sentido, embora hoje em dia sejam considerados ultrapassados. Em alguns dos episódios em que Ross é destaque, ele se incomoda com o fato do filho brincar de boneca, faz piadas ao apontar que foi trocado por outra mulher e não gosta da ideia de um homem ser babá. Fatos com um tom de humor cabível a serviço de um roteiro. Prato cheio para os defensores dos bons costumes transformarem em uma bomba relógio que detona a possibilidade de rever uma série tão admirada até o momento.
O que se deve debater e aceitar, a meu ver, é que a série tem que ser vista como um reflexo da década de 90, bastante diversa dos dias atuais, em que se permitiam comentários sobre gordofobia, sem a menor intenção de denegrir as personagens. Esse é o caso da adolescente Monica, interpretada por Courtney Cox, uma menina com excesso de peso, problema que a afetava e ainda é comum em jovens de todo o mundo. Além disso, esses juízes do politicamente correto, ao massacrarem a série pelas piadas homofóbicas sobre a relação entre as personagens Susan e Carol devem ter se esquecido do casamento LGBT dessas duas personagens, que ocorreu durante a segunda temporada. Nos Estados Unidos, esse momento causou polêmica, e a série sofreu ameaças de boicote. Porém, bateu recordes de audiência, consolidando o sucesso da produção. Pena que os inquisidores atuais não se atentam para tal fato.
Da mesma forma, foram debatidos temas como infertilidade, adoção e formações de famílias alternativas. A mulher também foi destaque no seriado, com três protagonistas independentes, com vida sexual ativa e com cargos diversos. Tudo de uma forma leve e sem julgamentos. Ademais, focar nas piadas isoladas de Friends é injusto. A série nunca se mostrou politicamente incorreta. Pelo contrário, abordou temas polêmicos para a época e que até hoje estão em pauta, de forma descontraída, o que gerou uma infinidade de fãs e seguidores féis. Mas como nem tudo são flores, a mão da oposição surge para derrubar um momento que marcou uma década, e se manteve como uma das séries mais assistidas e admiradas.
Segundo os militantes em prol dos bons costumes, Friends, The Reunion peca pela falta de diversidade, com a ausência de atores negros na lista de convidados do especial. Várias manifestações sobre o programa detectam a pequenez a serviço da moral, em que seus defensores parecem trazer resquícios de um período histórico em que se queimavam livros na fogueira, condenava-se à forca, e tantas outras situações em que a censura era imposta de forma arbitrária, em nome de um regime punitivo e autoritário. Às vezes, tenho a sensação de que tudo isso tem um propósito, o de acobertar o que realmente deveria saltar aos olhos da maioria e acaba sendo enterrado pelos “mimimis” dessa turma moralista. Fiquemos atentos.
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