Tragédia de Mariana: O que mudou cinco anos após o rompimento da barragem de Fundão

Em novembro de 2015, mais de 39 milhões de metros cúbicos de lama de minério de ferro invadiram o subdistrito de Bento Rodrigues; de Minas Gerais ao Espírito Santo, a luta dos atingidos continua

  • Por Caroline Hardt
  • 05/11/2020 08h00 - Atualizado em 06/11/2020 10h38
Rogério Alves/TV Senado Rogério Alves / TV Senado Ao longo do Rio Doce, moradores buscam formas de comprovar que foram prejudicados pela lama de rejeitos

Cinco de novembro de 2015, quinta-feira, Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana, cidade histórica em Minas Gerais, foi invadido por mais de 39 milhões de metros cúbicos de lama de minério de ferro. Próximo às 16h, a barragem de Fundão, localizada a 5 km da comunidade e de responsabilidade da mineradora Samarco S.A, se rompeu levando rejeitos com alta concentração de metais pesados para Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo, Gesteira e outras 37 localidades ao longo do Rio Doce. Pelo caminho, 19 vidas foram perdidas, toneladas de peixes mortos foram retirados, espécies são consideradas possivelmente extintas e centenas de famílias foram impactadas. Mas cinco anos depois, o que mudou? Para a Fundação Renova, entidade responsável pela reparação dos danos causados pelo rompimento, significativos avanços foram dados principalmente nos últimos meses, com a retomada das obras para a reconstrução dos locais afetados e a criação de novos planos de indenização. No entanto, para os atingidos, os avanços são poucos e a espera pela retomada da vida nas antigas comunidades ainda continua. Nesta quinta-feira, 5, data em que marca os cinco anos da tragédia de Mariana, considerado um dos maiores crimes ambientais do mundo, confira abaixo as principais mudanças em pontos cruciais como meio ambiente indenizações e reassentamentos:

Meio Ambiente

Cinco anos depois do rompimento de Fundão, os impactos ambientais começam a ser minimizados. Dados gerados anualmente de 92 pontos de monitoramento mostram que a qualidade da água na bacia do Rio Doce voltou a patamar similar ao encontrado antes do desastre ambiental. Segundo a Fundação Renova, com tratamento de um sistema convencional, a água já pode voltar a ser consumida. A entidade afirma que o rejeito “não é tóxico, contendo essencialmente elementos do solo (rico em ferro, manganês e alumínio), sílica (areia) e água”. E, considerando os critérios da Norma Brasileira de Classificação de Resíduos Sólidos, o sedimento é caracterizado como “não perigoso”. No entanto, possibilidade de ingestão das águas do Rio Doce é contestada por ambientalistas como o deputado federal Rodrigo Agostinho (PSB). O parlamentar indica que o contato os recursos contaminados deve ser evitado “a todo custo”. Ele afirma que mesmo com os níveis positivos, como defende a Renova, a contaminação da bacia hidrográfica permanece no leito dos rios como “um fantasma” que irá inviabilizar a utilização dos resíduos por um longo tempo. “A contaminação vai ficar no fundo no leito dos rios, ela matou quase todas as espécies vivas. O Rio Doce aos poucos está apresentando uma água um pouco melhor, mas a perda da biodiversidade foi muito grande e para que a natureza se recupere ainda vai levar muito tempo.”

Além da parcial recuperação do Rio Doce, cinco anos depois, ações para a recuperação dos danos ambientais também incluem investimento de R$ 600 milhões em atividades de saneamento básico, tratamento de esgoto e de resíduos sólidos em todos os 39 municípios atingidos. De acordo com informações do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce (CBH-Doce), 80% de todo o esgoto gerado pelas cidades atingidas são despejados no rio. Com isso, considerando este cenário, a proposta é minimizar o lançamento de esgotos sem tratamento na bacia e beneficiar cerca de 1,5 milhão de pessoas. No entanto, segundo dados da própria Renova, até setembro de 2020, apenas R$ 15 milhões foram repassados a 14 municípios mineiros, três capixabas e para o Consórcio Intermunicipal Multissetorial do Vale do Piranga (CIMVALPI), o que significa 3,75% do montante total. Ainda a nível ambiental, para melhorar o abastecimento hídrico das regiões, foram realizadas melhorias em 13 estações de tratamento (ETAs) em seis municípios de Minas Gerais e dois no Espírito Santo, além da reforma ou construção de 10 adutoras. Ao mesmo tempo, segundo a fundação, foram desenvolvidos 15 sistemas de captação alternativa de recursos para que os municípios não dependam exclusivamente das águas do Rio Doce. Enquanto isso, as ações para restauração florestal alcançaram 1.355 hectares dos 40 mil projetados para recuperação de Áreas de Preservação Permanente (APPs) até 2027, o que representa pouco mais de 3,38%.

Indenizações

A Fundação Renova aponta que, até agosto de 2020, R$ 2,6 bilhões já foram pagos a 321 mil pessoas beneficiadas por indenizações ou Auxílio Financeiro Emergencial (AFE), sendo R$ 1,28 bilhão em cidades de Minas Gerais e R$ 1,32 bilhão no Espírito Santo. Segundo eles, em Mariana, onde processo de indenização acontece de maneira diferente das demais localidades, R$ 161 milhões já foram pagos até 31 de agosto de 2020. No entanto, esse número poderia ser ainda maior, já que muitos moradores sequer são considerados atingidos pela instituição. Esse é o caso da cerimonialista Luiza Motta Queiroz, moradora de Paracatu de Baixo. Ela conta que pela dificuldade para comprovação da profissão, apenas o marido é reconhecido como atingido e tem acesso ao cartão do auxílio financeiro. Longe de ser exceção, a história de Luzia também se repete em outras comunidades e, em muitos casos, também representa uma consequência do machismo. Elaine Pereira, moradora de Bento Rodrigues, conta que muitas moradoras, assim como Luzia, que exercia uma atividade informal, não foram financeiramente reconhecidas como atingidas e, com isso, não recebem os valores devidos e vivem “à deriva dos maridos”. “Eles não reconhecem a mulher como atingida, existe essa briga exatamente por isso. A mulher fazia coisas para ajudar nas despesas, foi obrigada a sair do lugar em que vivia, perdeu a renda que tinham para ajudar em casa, mas quem eles reconhecem são apenas os homens. Então colocam o cartão [de pagamento mensal] no nome do marido e a mulher tem que aceitar viver como se fosse dependente do marido”, relata a moradora em transmissão ao vivo sobre o rompimento da barragem de Fundão.

Ao mesmo tempo, ao longo do Rio Doce, outros atingidos também buscam formas de comprovar que foram prejudicados pela lama de rejeitos. André de Freitas, presidente da Renova, define como um “dos grandes desafios a indenização de pessoas com difícil comprovação” pela alta informalidade. Como solução para o problema, após decisão da 12ª Vara Federal por petições apresentadas pelas Comissões de Atingidos de Baixo Guandu (ES) e de Naque (MG), a Fundação criou um novo sistema indenizatório, em vigor desde agosto, e que deve ser ampliado para outros municípios. A proposta visa, por meio de um “projeto muito mais simples” com “alta flexibilização dos critérios”, indenizar trabalhadores de diversas categorias, como pescadores, lavadeiras, artesãos e areeiros, que foram atingidos pelo crime ambiental. A Fundação considera os valores “bastante atrativos”, com pagamentos de até R$ 100 mil por indenização, e comemora o bom resultado. “Realmente tínhamos uma dificuldade por essa fragilidade de comprovação. Mas foi muito interessante, um dos momentos mais emocionais foi quando conseguimos pagar o primeiro caso à uma mulher artesã, categoria informal, na região de Baixo Guandu e fazer a indenização, permitindo que ela seguisse com a vida dela. É o que queremos fazer, pagar as pessoas, recuperar o rio e construir as casas”, afirma. No entanto, embora a entidade afirme que mais de 350 casos já foram pagos utilizando o novo mecanismo e afirme que 4.800 requerimentos já tenham sido apresentados, uma ação do Ministério Público Federal (MPF) pede que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região anule todos atos processuais, mantendo, porém, a continuidade das indenizações. Segundo o MPF, por uma ação considerada “falsa defesa dos atingidos”, nove moradores de Baixo Guandu foram induzidos por uma advogada a formar uma comissão, não reconhecida por todos os atingidos, e aceitar acordos que “fixaram requisitos e exigências que, ao invés de beneficiarem, prejudicam gravemente os atingidos’.

Para o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) esse é apenas mais com caso que demonstra as ações pouco efetivas para a reparação dos prejuízos causados pelo rompimento de Fundão. A coordenadora da entidade, Tchenna Maso, pontua que, ao longo destes cinco anos, as ações adotadas pela Fundação Renova, assim como pelas empresas responsáveis pelo rompimento, buscam apenas “mitigar o que aconteceu”. A longa espera, somada a um período de pandemia, faz com que os atingidos aceitem acordos que minimizam “a perspectiva coletiva do reassentamento que elas sonhavam para a comunidade”. “As ações são para mitigar os efeitos do crime, coisa que deveriam ser feitas um ou dois anos depois. Cinco anos depois vemos empresas com grandes lucros, como a Vale e a BHP Billiton, que já reestruturam a barragem de Fundão, mas que não foram capazes de construir e finalizar nenhum dos reassentamentos coletivos. O que vemos é um estrangulando das políticas reparatórias, que nunca foram tratada como essa perspectiva de crime socioambiental. [O rompimento de Fundão] foi muito mais tratado pela Fundação Renova como se ela estivesse prestando políticas assistencialistas, tanto que boa parte dos critérios que fundamentam os programas são de políticas públicas e não com esse caráter da responsabilização concreta por um dano causado. Tudo é muito para mitigar o que aconteceu, mas longe de reparar.”

Da mesma forma, cinco anos depois, os moradores também reclamam das dificuldades para uma reparação justa. “Eles não pensam no que perdemos, que tivemos que correr da lama e que está tudo mudado. Eles pensam em cifras, mas quem é atingido pensa no psicológico e nas consequências desse rompimento. A Renova foi criada para reparar e ficar ao lado dos atingidos, mas ela não está reparando. Como o nome já diz, ela está renovando o crime a cada dia, a cada reunião a gente sai de lá mais frustrado”, diz Elaine Pereira, de Bento Rodrigues. Do  mesmo jeito, a representante de Paracatu de Baixo, Luiza Motta Queiroz, lembra que os atingidos querem apenas a tão sonhada volta ao lar. “Eles têm que entender que o povo não quer receber viver em gaiola de ouro em Mariana, o povo não quer só esse dinheiro amaldiçoado. O dinheiro não está acima de qualquer coisa. Está na hora da gente seguir a nossa vida, mas antes eles têm que devolver a gente para a nossa comunidade, para o que éramos.”

Reassentamento

Bento Rodrigues

A expectativa para a conclusão do reassentamento de Bento Rodrigues, primeiro distrito de Mariana a ser atingido, é fevereiro de 2021. Ao todo, são 398 hectares de terras, sendo que 99 hectares serão de áreas construídas. Segundo a Fundação Renova, inicialmente, a expectativa era finalizar 2020 com 85% das obras concluídas no loteamento. No entanto, o presidente da entidade conta que a “pandemia tirou todo mundo dos canteiros” e, com isso, as entregas foram atrasadas. “Esperávamos estar com cinco mil pessoas trabalhando agora. Com a Covid-19, interrompemos a obra e fomos voltando com a força de trabalho aos poucos então teve um impacto em nosso cronograma. A última coisa que queríamos era ser um foco de contaminação”, explica André de Freitas. Agora, a estimativa é entregar 95% das obras de infraestrutura ainda este ano. As construções incluem: ruas asfaltadas, esgoto, água potável, iluminação e bens públicos. Quanto as residências o processo é mais lento. No total, apenas dois dos 211 imóveis foram finalizados e entregue aos moradores. Além deles, outras 37 casas estão em construção e quatro devem ser entregues até o fim de 2020. No total, além das residências, serão construídos no novo subdistrito: campo de futebol, posto de saúde, Escola de Bento Rodrigues, posto de serviços, quadra poliesportiva, associação comunitária, Igreja das Mercês e Igreja São Bento, entre outros.

Paracatu de Baixo

Para a comunidade de Paracatu de Baixo, segunda localidade a ser totalmente atingida pelo rompimento da barragem de Fundão, a construção das moradias também está longe de começar. O loteamento segue em fase de construção das obras de infraestrutura, pavimentação e instalação elétrica para que, depois de concluídas, comecem as edificações das 98 residências. Assim como em Bento Rodrigues, a proposta é entregar as moradias aos poucos, conforme sejam concluídas. No entanto, os moradores lutam por uma entrega única. A preocupação, segundo Luzia Queiroz, é que com a entrega em etapas alguns atingidos acabem “ficando para trás”. Ao todo, além das casas, será construído um prédio da Escola Fundamental, Escola Infantil, campo de futebol, postos de saúde e de serviços, igrejas católicas e evangélicas, salão comunitário, praça Santo Antônio, quadra poliesportiva e o cemitério. Mesmo com a sequência de atrasos, Luzia, que é membro da Comissão dos Atingidos, garante que a população não vai desistir de Paracatu de Baixo e reforça que o antigo distrito, hoje soterrado pela lama de rejeitos, nunca será esquecido. “A gente nunca abandonou o território, jamais abandonaremos porque ele pertence a nós. Mesmo sendo indenizados, o território ainda é nosso. Nós somos muitos, somos fortes e não vamos parar nunca”, afirma.

No geral, a espera pela reconstrução das moradias é longa. Enquanto isso, nesses cinco anos, os moradores lutam para garantir a união dos atingidos que seguem espalhados por casas alugadas na região marianense. Mesmo com os esforços, a união não é mais a mesma. Os amigos de longa data não são mais vizinhos, alguns sequer se encontram, as comadres foram separadas, famílias colocadas em casas distantes na cidade mineira e as comunidades nunca mais serão as mesmas. Segundo dados da Fundação Renova, ao todo, 129 famílias de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo optaram pelo reassentamento familiar, considerado uma “modalidade de reparação do direito à moradia fora dos reassentamentos coletivos”. Em números, 49 imóveis foram adquiridos para famílias que optaram pelo reassentamento familiar, além de 19 residências para reformas, 27 imóveis para construção e três lotes vagos. Ao optar pela modalidade de reassentamento familiar os atingidos abrem mão da construção nos novos subdistritos, o que amplia ainda mais o abismo físico e emocional entre os moradores. “A memória, a cultura, o regionalismo, a história e os modos de vida da comunidade a gente não vai levar mais, nunca mais serão os mesmos”, lamenta Luzia. Além dos dois reassentamentos, Gesteira, comunidade da cidade de Barra Longa, em Minas Gerais, também terá reconstrução em novo loteamento. Ao todo, segundo a Renova, 20 famílias, oito residências, um comércio, 11 lotes, uma igreja católica, um campo de futebol e uma escola foram atingidos pela lama de Fundão em novembro de 2015. No entanto, o processo ainda aguarda decisão judicial sobre o abastecimento de água na nova localidade e não há previsão para entrega do loteamento.

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