JP Descomplica: O que muda com a liberação da Anvisa dos remédios à base de maconha no Brasil?

  • Por Camila Corsini e Carolina Fortes
  • 10/12/2019 07h00 - Atualizado em 10/12/2019 07h01
Pixabay maconha-anvisa Cultivo da planta continua proibido, após a pauta perder por três votos a um

Na última terça-feira (3), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou por unanimidade a produção e a venda de medicamentos à base de cannabis no Brasil. Entretanto, o cultivo da planta continua proibido, após a pauta perder por três votos a um.

Desde 2017, a Anvisa libera o uso terapêutico do canabidiol (CBD). Essa é uma das 113 substâncias químicas canabinoides encontradas na Cannabis sativa — juntamente com o TCH –, e constitui grande parte da planta, chegando a representar mais de 40% de seus extratos.

Porém, antes da nova resolução, para ter acesso aos remédios era necessário que o paciente realizasse um pedido formal para que fosse importado. Agora, ele será disponibilizado nas farmácias — e poderá ser comprado com receita médica, a depender da porcentagem de THC em seus componentes.

Perguntas e respostas:

Essa liberação deixa o valor do remédio mais acessível?

Algumas mudanças devem contribuir para a queda do preço dos medicamentos à base de cannabis no País, entre elas o fato de a nova resolução prever a produção e venda dentro do Brasil. No entanto, Antonio Barra, um dos diretores colegiados da Anvisa, alertou que isso não assegura que o produto saia mais barato.

“Esse é um insumo cobiçado pelo crime organizado, então é necessário ter um arcabouço de segurança muito grande, o que custa caro”, explicou. Para ele, isso também justifica por que o produto não seria necessariamente mais barato se o cultivo tivesse sido liberado.

Segundo o diretor, um dos fatores que deve impactar na diminuição do valor é a possibilidade do registrante importar grandes quantidades. Até agora, os remédios só podiam ser importados de forma individual.

O neurologista e membro da Associação Brasileira de Neurologia Daniel Ciampi afirmou que um dos maiores problemas era mesmo o custo elevado dos medicamentos. Nesse sentido, o médico comemorou a decisão.

“É uma boa notícia, os remédios estarão disponíveis para a população de forma mais simples. Hoje existe uma certa democratização, porque a prescrição é muito restrita e dependente de remédios importados, o que deixa caríssimo. Custa mais de dois salários mínimos o tratamento para um mês”, declarou.

Outro fator que dificultava o acesso aos medicamentos era a burocracia. Sueli Vieira, que é sócia da área regulatória da L.O. Batista Advogados e integra um grupo de trabalho sobre maconha medicinal na Associação Brasileira da Indústria de Insumos farmacêuticos, explicou que a venda era muito restrita.

Só havia, por exemplo, um produto registrado no Brasil e o acesso a ele envolvia muitos trâmites. “Os custos eram muito elevados e os prazos para a chegada dos medicamentos estavam demorando muito, levando inclusive a óbitos, principalmente nos pacientes em fase terminal”, explicou.

Para Sueli, com a nova resolução, o indivíduo não só terá mais acesso ao produto, mas a uma gama variada dele, o que possibilita o tratamento de doenças diversas. “Por exemplo, doenças degenerativas, dores crônicas… Então isso também é uma vantagem”, disse.

O que precisa ser feito para que os remédios cheguem às farmácias?

Segundo Antonio Barra, um dos diretores colegiados da Anvisa, o processo após a votação favorável pode ser um pouco burocrático. Inclusive, os medicamentos devem demorar cerca de seis meses para chegar até as prateleiras.

“Primeiro ocorrerá a publicação da votação no Diário Oficial da União. Depois, o prazo é de 90 dias para que esteja completamente vigente em condições de ser fornecida a autorização para quem nos demandar. Ou seja, precisamos que o produtor envie para nós a solicitação para o registro e, a partir daí, isso vai ser concedido e o produto disponibilizado.”

Como vai funcionar a compra desses medicamentos?

Os remédios à base de cannabis estarão disponíveis em farmácias e drogarias. No entanto, é necessário que o paciente passe por uma consulta médica e receba uma receita para comprar o produto.

Essa receita vai depender da porcentagem de THC — um dos componentes que pode levar ao vício — que o paciente precisa. De acordo com o neurologista Daniel Ciampi, se a quantidade for maior do que 0,2%, a receita é semelhante à já utilizada para remédios tarja preta — como ritalina e opióides. Se o limite for abaixo, a receita tradicional — usada para medicamentos controlados — é suficiente.

Ainda não existem estudos concretos que mapeiam todas as doenças que respondem ao tratamento com o remédio a base de canabidiol. Porém, sabe-se que epilepsias refratárias aos medicamentos comuns, dores neuropáticas e alguns níveis de autismo costumam apresentar melhoras no quadro após o uso de algumas doses.

Empresas brasileiras poderão produzir?

Na verdade, como o cultivo não foi liberado, as empresas irão importar o produto na sua forma acabada ou a matéria prima dele. A partir daí, elas poderão vender para as farmácias e drogarias do País.

Para viabilizar o monitoramento integral dos lotes de produtos e medicamentos à base de cannabis importados, foram limitados os pontos de entrada em território nacional.

O regulamento da Anvisa exige que as empresas fabricantes tenham:

  • Certificado de Boas Práticas de Fabricação (emitido pela Agência);
  • Autorização especial para seu funcionamento;
  • Conhecimento da concentração dos principais canabinoides presentes na fórmula do produto;
  • Documentação técnica da qualidade dos produtos;
  • Condições operacionais para realizar análises de controle de qualidade dos produtos em território brasileiro.

Vida real

Dona Lourdes, de 87 anos, avó do repórter da Jovem Pan Leonardo Martins, faz uso de um medicamento à base de cannabis há aproximadamente seis meses. Ela trata um alzheimer há dois anos e o neto contou que, nos últimos meses, as dores só aumentavam. Foi quando ele decidiu ir atrás dos remédios à base de maconha no Brasil.

Leonardo encontrou a especialidade da avó — geriatria — em um site que compila todos os médicos que trabalham com o produto no País. “Foi um processo convencer minha família de que não é a droga, mas eles aceitaram muito bem”, explicou.

O jornalista afirmou que, ao contrário da maioria das pessoas, o acesso ao medicamento foi muito rápido. “Eu tinha ido preparado para ficar na fila 60 dias (que é normalmente o que demora com os trâmites da Anvisa), mas achamos essa médica que tem parceria com um instituto e em menos de uma semana já passamos para pegar o remédio”, disse.

Ele contou que dona Lourdes toma as duas substâncias, o THC e o CBD, em gotas, e que as quantidades são diferentes, adaptáveis à forma como a avó está se sentindo naquela semana.

Desde que ela começou o tratamento, as dores sumiram, de acordo com Leonardo. “Ela reagiu muito bem, tinha várias dores no corpo, e também tem outro fator, que é a depressão. Ela se via impotente e começou a ficar cada vez mais reclusa. Depois que começou com o THC e o CBD, em questão de duas semanas as dores sumiram, e em ou dois meses ela começou a ficar mais disposta”, explicou.

Segundo o repórter, o tratamento à base dessas substâncias é diferente dos remédios tradicionais (alopáticos), pois eles agem no emocional do pacientes. “Os canabinoides fazem uma espécie de manutenção. Não é uma cura, é trazer qualidade de vida para a pessoa”, finalizou.

Quer conferir a reportagem em áudio? No episódio da semana do podcast JP Descomplica, esclarecemos as principais dúvidas sobre a liberação dos remédios à base de cannabis no Brasil e como isso pode mudar a vida de quem depende destes medicamentos. É só dar o play!

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