Queda do rei da Tailândia? Entenda o movimento que pede o fim de 88 anos de monarquia

Especialista em relações exteriores explica que as manifestações no país romperam o costume de venerar o rei como uma divindade, porém o processo de derrubada da monarquia terá um longo caminho pela frente

  • Por Bárbara Ligero
  • 25/10/2020 08h00
REUTERS/Jorge Silva Com foto do rei da Tailândia ao fundo, manifestante reproduz o gesto que se tornou símbolo dos protestos anti-monarquia

Por todas as cidades da Tailândia, é comum ver os membros da família real estampando enormes cartazes ao ar livre. Na capital Bangkok, especificamente, as fotos dos monarcas, que posam como imperadores de um tempo que já se passou, contrastam com os modernos arranha-céus que compõem o skyline da metrópole. Não raro essas imagens são cercadas por flores, como também acontece com as estátuas de Buda. O modo de viver da população, praticamente toda budista, também não combina com o trânsito caótico nas ruas. As contradições do país, que já eram muitas, aumentaram nas últimas semanas com o início das manifestações contra a monarquia. De repente, para quem olha de fora, os tailandeses saíram na rua dizendo palavras de ordem contra uma figura política que eles veneravam quase tanto, se não tanto, quanto Buda. Entre os manifestantes, o comportamento pacífico em geral permaneceu. Porém, do lado da polícia, a resposta não foi tão harmoniosa quanto se poderia esperar. Para aumentar a lista de curiosidades sobre o que vem acontecendo na Tailândia, o símbolo das manifestações se tornou o ato de erguer três dedos, da mesma forma que a protagonista Katniss Everdeen, da franquia de livros e filmes Jogos Vorazes, fazia em protesto aos vilões da ficção.

Tal pai, tal filho?

O vilão, na realidade tailandesa, seria o rei Maha Vajiralongkorn. Apesar de ter sido nomeado em 2016, após a morte do seu pai, ele teve que cumprir uma longa tradição de luto antes de poder ser finalmente coroado em maio de 2019. Tendo estudado no Reino Unido e na Austrália, Vajiralongkorn passou pouco tempo da sua juventude na Tailândia e parece continuar preferindo ficar longe do país onde nasceu. No início da pandemia do novo coronavírus, por exemplo, ele se hospedou em um hotel de luxo na Alemanha com mais 20 mulheres para se isolar – se é que isso pode ser chamado de isolamento. A isso somam-se as acusações de Vajiralongkorn estar utilizando o seu poder como rei da Tailândia para aumentar a sua riqueza pessoal. Ele fez alterações na Lei de Propriedade da Coroa que permitiram que bilhões de dólares em ativos fossem transferidos para o seu controle. Também colocou em seu nome ações de vários conglomerados tailandeses públicos, incluindo o banco Siam Commercial Bank Public Company e a empresa manufatureira Siam Cement Public Company, responsável pela produção e distribuição de cimento, petroquímicos, papéis e material de construção.

Por esses e outros motivos, Vajiralongkorn mantém a fama de playboy no auge dos seus 68 anos. A idade avançada é uma consequência do longo reinado do seu pai, Bhumibol Adulyadej que subiu ao trono quando tinha 24 anos e ali permaneceu ao longo de sete décadas. Diferentemente do seu filho, o antigo monarca casou-se apenas uma vez, utilizou a sua fortuna pessoal para desenvolver as regiões rurais do país e, principalmente, construiu a imagem de um pai piedoso e benévolo para o povo tailandês, motivo pelo qual era reverenciado como um verdadeiro semi-deus.

Bode expiatório

Manifestante segura cartaz escrito: “2020 é um ano ruim, mas a política tailandesa é pior” (REUTERS/Athit Perawongmetha)

Consultado pela Jovem Pan, o professor visitante da Universidade de Relações Exteriores da China, Marcus Vinicius de Freitas, explicou que o contraste entre o rei atual e o antigo foi um fator importante para o início das manifestações pró-democracia na Tailândia e, principalmente, para que acontecesse uma certa quebra na divinização do monarca. Ao contrário da Europa, que foi abandonando a ideia do direito divino dos reis a partir do Renascimento, a Ásia manteve esse paradigma por mais tempo. No Japão, por exemplo, a figura do imperador ainda existe, apesar da sua associação como uma espécie de semi-deus ter ficado para trás na época da Segunda Guerra Mundial. Na Tailândia, esse processo pode estar começando a acontecer agora, apesar de ainda não ser possível cravá-lo como um fato. “A monarquia ainda existe como um elo de conexão entre o passado e o presente, mantendo a história daquele povo. A figura do estado, representada por este monarca, permanece”, analisa Freitas. Para o especialista em relações internacionais, o povo tailandês está direcionando ao rei parte de um descontamento que também está relacionado com a crise provocada pela pandemia do novo coronavírus e com a impopularidade do primeiro-ministro Prayuth Chan-ocha, que se autonomeou para o cargo depois de um Golpe de Estado em maio de 2014. Linha-dura e grande defensor da monarquia, Chan-ocha comanda o Exército Real da Tailândia desde 2010 e foi mantido no posto de primeiro-ministro por Maha Vajiralongkorn após a sua coroação.

Ao clima pré-existente de insatisfação somou-se o novo coronavírus. Apesar do fechamento das fronteiras ter impedido um maior surto da Covid-19 pelo território tailandês, a economia do país, bastante dependente do turismo, foi fortemente impactada. “A pandemia desestruturou a sociedade do ponto de vista econômico. Muitas das manifestações são lideradas por jovens porque são eles que enfrentam os desafios de uma situação econômica nova e complicada, que de alguma forma os tornam mais críticos ao momento político do país”, explica Freitas.

A monarquia permanecerá

Entre outras coisas, os jovens manifestantes reivindicam a renúncia do primeiro-ministro Prayuth Chan-ocha; a substituição da atual Constituição, que foi redigida pela antiga junta militar; a redução da influência do exército na política nacional; e a reforma da monarquia. Até pouco tempo atrás, limitar o poder do rei era uma proposta impensável quando consideramos que existe uma lei na Tailândia que prevê penas de até 15 anos de prisão para quem fazer qualquer tipo de crítica à família real. O professor Marcus Vinicius de Freitas sinaliza que, como as manifestações estão sendo guiadas pela juventude, é natural que suas reivindicações envolvam a total reforma do governo. Porém, esse ímpeto deve entrar em contraste com a opinião dos cidadãos mais velhos, que possuem a lembrança do impacto positivo da família real na Tailândia no passado. Ele acredita que a estabilidade da monarquia dependerá da reposta do governo à crise e de uma mudança na postura do rei Maha Vajiralongkorn. “Se ele se comportar de acordo com os parâmetros do pai, é questão de tempo até a reconstrução da imagem da monarquia e do empenho em preservá-la como o fio condutor da história tailandesa”, afirmou. Freitas analisa que, além da troca do primeiro-ministro, os manifestantes provavelmente se acalmarão caso aconteça uma mudança na perspectiva sobre o monarca, que deve ser visto como uma vantagem, ao invés de um fardo. “Eu ainda não vejo o fim da monarquia na Tailândia como algo que poderia acontecer imediatamente”, conclui.

Linha do tempo

Manifestantes tailandeses durante o protesto do dia 19 de outubro em Bangkok (REUTERS/Athit Perawongmetha)

18 de julho de 2020 – O grupo “Free Youth” reúne cerca de 2.500 manifestantes em um protesto em Bangkok, demandando a dissolução do parlamento, mudanças na constituição e a liberdade de crítica.

16 de agosto – Mais de 10.000 manifestantes  se reúnem em um protesto no Monumento à Democracia de Bangkok.

19 de setembro – Dezenas de milhares de manifestantes se reúnem no maior protesto do país desde 2004, pedindo a reforma da democracia e a renúncia do primeiro-ministro Prayuth Chan-ocha.

20 de setembro – Manifestantes instalam uma placa no Grand Palace, em Bangkok, dizendo que a Tailândia pertence ao seu povo, e não à monarquia. O cartaz foi removido no dia seguinte.

13 de outubro – Manifestantes brigam com a polícia enquanto o rei Maha Vajiralongkorn passava de carro pelas ruas de Bangkok. Eles pediam a libertação de 21 pessoas que haviam sido presas durante protestos.

14 de outubro – Dezenas de milhares de manifestantes montam acampamento na frente da casa do primeiro-ministro Prayuth Chan-ocha, exigindo a sua remoção do cargo. A polícia agride os manifestantes quando o carro da rainha consorte Suthida Tidjai passa ali perto.

15 de outubro – Em uma tentativa de frear os protestos, o governo decreta estado de emergência e proíbe reuniões com cinco ou mais pessoas. Mesmo assim, milhares de manifestantes vão às ruas.

16 de outubro – A polícia usa canhões de água para tentar dispersar um protesto com milhares de manifestantes.

17 de outubro – Dezenas de milhares de manifestantes participam de vários protestos anti-monarquia por toda a Tailândia.

18 de outubro – Manifestantes ocupam dois dos principais centros de transporte urbano de Bangkok e os protestos se espalham pelo país.

21 de outubro – O primeiro-ministro Prayuth Chan-ocha anuncia que ouvirá as exigências dos manifestantes e deverá suspender o estado de emergência.

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