Crise na Europa Oriental e Ásia Central é consequência do fim da União Soviética

Nas últimas semanas, Bielorússia, Armênia, Azerbaijão e Quirguistão mergulharam em um caos político e bélico; especialista em relações internacionais explica o porquê

  • Por Bárbara Ligero
  • 13/10/2020 10h00
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EFE/EPA/DAVIT GHAHRAMANYAN / ARMENIAN FOREIGN MINISTRY O interior destruído da Catedral Ghazanchetsots, na Armênia, após um ataque do Azerbaijão

Primeiro, foram as acusações de eleições fraudadas na Bielorússia. Depois, o conflito armado entre Armênia e Azerbaijão. Agora, manifestações no Quirguistão ameaçam tirar o presidente do poder. O que esses quatro países têm em comum é o fato de terem sido parte da antiga União Soviética, que deixou de existir há não muito tempo, em 1991. O caos político que se instalou na Europa Oriental e na Ásia Central não é coincidência – e passa pela tentativa da Rússia de manter os países em sua periferia sob controle. Para entender o que está acontecendo na região, a Jovem Pan consultou o reitor da FMU e professor de relações internacionais Manuel Furriela.

O especialista explica que, com o fim do estado socialista, esses países menores saíram enfraquecidos e dependentes da Rússia, seja para o fornecimento de diversos produtos ou para ter acesso ao mar. Vladmir Putin, que governa o gigante território russo há mais de vinte anos, é constantemente acusado de ajudar os países a fraudar eleições e enviar tropas para defender os governantes que se aliam a ele. A China também está envolvida nos problemas. Por sua localização geográfica, os países da Europa Oriental e da Ásia Central servem como uma espécie de corredor até as nações mais ricas do ocidente. Ao exercer sua influência sobre os países menores, a Rússia também quer estancar a expansão chinesa, que pode resultar em uma nova “Rota da Seda”.

Bielorússia

A líder da oposição, Sviatlana Tikhanovskaya, tem viajado por países da Europa para divulgar sua causa depois de fugir da Bielorússia

Localizada na Europa Oriental, a Bielorússia aparenta ser um exemplo no que diz respeito aos índices de desenvolvimento humano, com taxa de mortalidade infantil baixa (2,9), taxa de alfabetização altíssima (99%) e um dos menores coeficientes de Gini – um indicador de desigualdade pelas Nações Unidas – de todo o continente. Porém, a realidade não é tão bela quanto parece. O professor de relações internacionais Manuel Furriela explica que há uma grande repressão política no país, onde a maior parte da população passa por privações na aquisição de bens de consumo e dificilmente consegue ascender socialmente.

Tanto os indicadores positivos quanto os fatores negativos são herança do governo comunista. Com o fim da União Soviética, a Bielorússia foi o estado que mais manteve as características econômicas comunistas: apesar de ser capitalista, o país segue um forte modelo de estatização. O agravante, segundo Furriela, é que “durante as eleições, o mesmo governante é eleito sucessivamente e há sempre graves acusações internacionais de fraudes para manutenção do sistema político”. De fato, desde 1994 o presidente do país é Alexander Lukashenko, que foi sendo reeleito consecutivamente. Em agosto deste ano, ele foi reeleito mais uma vez com 80% dos votos, o que levou os bielorussos a protestarem, alegando que as eleições haviam sido fraudadas. Svetlana Tikhanovskaya, que era a opositora do presidente nas eleições, está refugiada na Lituânia desde o pleito. A ideia era que o seu marido, Sergei Tikhanovsky, concorresse à presidência, mas ele foi preso antes disso.

A Rússia tem defendido Lukashenko, de quem é aliada, e o professor de relações internacionais não tem dúvidas de que Putin possa ter tido relação nos resultados das eleições. A China também está do lado do presidente da Bielorússia, provavelmente pelo alinhamento ideológico entre os países.

Armênia x Azerbaijão

Manifestações a favor dos armênios aconteceram em várias partes do mundo

“A resolução do conflito entre Armênia e Azerbaijão é antigo e está longe do fim”, acredita Furriela. Há 32 anos, os países disputam um território montanhoso conhecido como Nagorno-Karabakh. Com a União Soviética, as nações se uniram e a briga perdeu o sentido. Porém, com o fim do estado socialista, as terras tão desejadas acabaram ficando com o Azerbaijão, de maioria muçulmana, apesar de ser ocupada principalmente por grupos étnicos armênios, de maioria cristã.

Em 1994, pelo menos 30 mil pessoas morreram no conflito. A briga acabou com um cessar-fogo, mas nunca se chegou a uma resolução diplomática para a disputa. A questão veio à tona mais uma vez no dia 27 de setembro, com um lado acusando o outro de ter atacado primeiro. A Armênia alega que o Azerbaijão bombardeou assentamentos habitados em Nagorno-Karabakh. Enquanto isso, o Azerbaijão afirma que apenas se defendeu de um ataque armênio.

Para Furriela, é preciso considerar que o Azerbaijão enriqueceu muito nos últimos anos com a exportação de gás e petróleo para a Europa, sendo a Rússia sua principal concorrente no setor. A nova condição econômica faz com que o governo azeri entenda que pode bancar novamente um conflito com a Armênia para reconquistar a ocupação do seu território. A Turquia se posicionou a favor do Azerbaijão porque quer defender os interesses europeus nos combustíveis produzidos pelo país. Já a Rússia possui uma aliança militar com a Armênia, mas está mantendo uma postura neutra em relação ao conflito porque deseja reconquistar sua influência sobre o Azerbaijão.

Quirguistão

Apoiadores de Japarov prostestam na capital Bishkek

Mais recentemente, foi a vez do Quirguistão apresentar problemas. O país é uma das poucas democracias na Ásia Central, mas tem um histórico conturbado de transições de poder. Essa é a terceira vez nos últimos 15 anos que os cidadãos do país estão nas ruas da capital, Bishkek, exigindo uma revolução política. O professor de relações internacionais Manuel Furriela analisa que, desde o fim da União Soviética, o Quirguistão não conseguiu consolidar a sua democracia. Na verdade, o que aconteceu foi que antigas lideranças retomaram o poder em um país que possui muitas etnias diferentes, cada uma com seu chefe.

Para entender os fatos que levaram à manifestação atual, também é preciso desenhar uma linha do tempo. De 2011 a 2017, o presidente do Quirguistão foi Almazbek Atambaiev, que governava o país ao lado do primeiro-ministro Sadyr Japarov. Em 2017, assumiu o governo Sooronbay Jeenbekov ao lado do primeiro-ministro Kubatbek Boronov. Em 2019, os antigos governantes Atambaiev e Japarov foram presos sob acusações de terem organizado confrontos e assassinatos quando outra onda de violência ameaçou desestabilizar o país. No dia 4 de outubro, foi anunciado o resultado de eleições parlamentares, nas quais os dois partidos favoráveis a Jeenbekov e Boronov se saíram vencedores. Os partidos que não alcançaram os votos necessários convocaram manifestações, que já deixaram um morto e mais de 500 feridos no país.

Durante a confusão, os manifestantes invadiram prédios do governo e libertaram da prisão o ex-presidente Almazbek Atambaiev e o ex-ministro Sadyr Japarov. O primeiro-ministro Boronov renunciou e Japarov acabou voltando ao seu antigo cargo na terça-feira, 6. Dias depois, na sexta-feira, 9, o presidente Jeenbekov decretou estado de emergência na capital, estabeleceu um toque de recolher e mandou o exército ocupar as ruas. Ele já declarou que está “disposto a renunciar”. A Rússia, que tem uma base militar no país, demonstrou preocupação, mas não interferiu na situação. Bastante pobre, o Quirguistão possui um território árido demais para produção agrícola e, diferentes de seus vizinhos, não possui recursos naturais atraentes. Nesse caso, o interesse russo é de meramente manter sua influência política na região.

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