Na Índia, pandemia de coronavírus fomenta trabalho, tráfico e casamento infantil

Com escolas fechadas e famílias desesperadas por dinheiro, milhões de crianças indianas estão sendo forçadas a trabalhar e casar, o que diminui as chances delas voltarem a estudar após o fim da pandemia

  • Por Bárbara Ligero
  • 13/10/2020 16h59
REUTERS/Rupak De Chowdhuri (INDIA SOCIETY) Além de serem obrigadas a trabalhar, meninas indianas correm o risco de serem submetidas ao casamento infantil

A pandemia do novo coronavírus abalou a educação global. Em algumas comunidades, o grande desafio é adaptar alunos, professores e pais ao ensino à distância. Em outras, o fechamento das escolas coloca as crianças em risco de serem submetidas a situações realmente degradantes. Na Índia, país que possui uma das maiores populações em idade escolar do mundo, o trabalho infantil já era uma questão muito antes do início do surto da doença. Segundo dados da Unicef, cerca de 10.1 milhões de crianças estavam em alguma forma de servidão no país. A situação vinha melhorando nos últimos anos, mas voltou a retroceder à medida que a Índia caminhava para bater o recorde mundial de casos de Covid-19 em um único dia: no final de setembro, o país registrava mais de 86 mil novos casos a cada 24 horas.

Como era esperado, o desemprego aumentou e arrastou milhares para a pobreza. Paradas em casa, as crianças se viram obrigadas a contribuir para o sustento da família executando trabalhos geralmente considerados perigosos, como transportar tijolos, coletar materiais recicláveis, operar em fábricas, mineirar e até mesmo realizar serviços de cunho sexual. A lei indiana proíbe o emprego de crianças menores de 14 anos em quase todas as tarefas: a exceção são os trabalhos artísticos e as participações nos negócios da família. No entanto, com o governo ocupado em combater o surto de coronavírus, a fiscalização não está acontecendo como deveria, conforme denunciou o jornal local The New Indian Express.

A principal preocupação é com o retorno dessas crianças aos estudos. Em uma recente conferência com jornalistas, a diretora executiva da Unicef, Henrietta Fore, explicou que “quanto mais tempo as crianças ficarem fora da escola, menor é a chance delas retornarem”. Isso acontece porque, aos poucos, os pais vão desenvolvendo uma dependência financeira do trabalho dos filhos que não tem data certa para acabar. Por esse motivo, o órgão das Nações Unidas está pedindo para que os governos “priorizem a reabertura das escolas quando as restrições forem suspensas”. Dependendo de como os fatos se desenrolarem, a pandemia de coronavírus pode reverter décadas de investimentos em educação e campanhas contra o trabalho infantil.

Tráfico infantil

Vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 2014, Kailash Satyarthi dedicou quatro décadas de sua vida ao resgate de crianças da escravidão e do tráfico – e também expressou preocupação com o cenário atual. Durante entrevista para a agência de notícias britânica Reuters, o indiano explicou que, uma vez que os menores de idade começam a trabalhar, eles ficam mais suscetíveis a serem traficados e/ou levados para o universo da prostituição. Em seu perfil oficial no Twitter, a Polícia de Nova Délhi, capital indiana, divulgou estar fazendo uma campanha especial pelo resgate de crianças desaparecidas.

Segundo a publicação, a cada dia cerca de 20 crianças somem na cidade. No país, a média diária é de 174 menores de idade desaparecidos. Apesar de algumas dessas crianças estarem fugindo de suas próprias famílias, a maioria é vendida pelos pais ou capturadas por traficantes humanos para trabalhos forçados. Ou seja, apesar das crianças serem menos afetadas pela Covid-19 em si, as reações à pandemia tem sido devastadoras para a sua segurança e desenvolvimento a longo prazo. Segundo a agência de notícias francesa RFI, no estado indiano de Jharkhand as garotas estão sendo comercializadas por cerca de 349 euros, metade do valor cobrado por cabras.

Casamento infantil

A situação é, de fato, especialmente delicada para as meninas. Na Índia, o casamento de menores de 18 anos é ilegal. Porém, segundo levantamento da Unicef, um terço de todas as noivas-crianças do mundo são indianas, situação que também foi agravada pela pandemia do novo coronavírus. De acordo com a emissora de televisão britânica BBC, isso aconteceu por uma combinação de fatores. Ao se verem desempregados, muitos homens indianos retornaram para os vilarejos e as cidades onde nasceram, onde encontraram pais ansiosos para casar as suas filhas diante das incertezas do futuro. Além disso, na Índia existe a tradição dos pais pagarem pelas festas de casamento, que estão sendo menores e, consequentemente, mais baratas, durante a quarentena.

Mais uma vez, o fato das escolas estarem fechadas também prejudica as crianças, que normalmente poderiam recorrer à ajuda dos educadores para se livrar de um casamento precoce. A Childline India, linha telefônica de ajuda para menores de idade em perigo, registrou um aumento de 17% das ocorrências relacionadas à casamento entre junho e julho deste ano, quando comparadas ao mesmo período de 2019. Smita Khanjow, que trabalha em um programa da Unicef de combate ao casamento infantil na Índia, acrescentou ainda em entrevista à BBC que “em comunidades extremamente pobres, as garotas já não são encorajadas a estudar. Uma vez que elas deixam a escola, é difícil convencer as famílias a trazê-las de volta”.

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