Sendero Luminoso: conheça o grupo que realizou massacre no Peru e polarizou ainda mais as eleições

Partido comunista de inspiração maoísta aterrorizou o país na década de 1980, foi derrotado pela ditatura de Alberto Fujimori e reapareceu a duas semanas de uma disputa presidencial histórica

  • Por Bárbara Ligero
  • 29/05/2021 10h00
EFE/ Stringer Peruanos acendem velas em homenagem às vítimas do massacre atribuído ao Sendero Luminoso Peruanos acendem velas em homenagem às 16 pessoas que morreram durante ataque terrorista do Sendero Luminoso

A maior parte dos peruanos achava que o Sendero Luminoso nem existia mais. A crença geral era que o protagonista de um dos conflitos civis mais violentos da América Latina, que deixou pelo menos 69 mil mortos e desaparecidos entre 1980 e 2000, tinha sido praticamente extinto. Porém, a matança de dezesseis pessoas, incluindo duas crianças que tiveram seus corpos carbonizados, serviu como uma espécie de recado dos remanescentes do grupo no último dia 23. Para garantir que a mensagem tinha sido transmitida com precisão, os terroristas ainda deixaram um bilhete na cena do crime, um bar e bordel no meio da selva do Vale dos Rios Apurímac, Ene e Mantaro (Vraem). “Peruano, boicote as eleições burguesas, porque não é teu caminho. Não vá votar, vote em branco ou nulo. Quem vota em Keiko Fujimori é traidor, assassino do Vraem e do Peru“, dizia o panfleto. As palavras e ações remetem e ao mesmo tempo contradizem as origens da guerrilha, ainda na década de 1960, quando foi fundado pelo professor de filosofia Abimael Guzmán como Partido Comunista do Peru – Sendero Luminoso (PCP-SL).

Da inspiração maoísta ao narcotráfico

Diferente do marxismo, que defendia que o proletariado deveria ser a figura central da revolução, a vertente chinesa do comunismo acreditava no potencial dos camponeses pobres de realizar uma insurreição armada. Essa ideia, que ficou conhecida como maoísmo, se encaixou perfeitamente com o contexto geográfico e histórico do surgimento do Sendero Luminoso, na pequena cidade agrícola de Ayacucho e durante o regime militar. O fundador Abimael Guzmán chegou a estudar o idioma quéchua para integrar os povos indígenas tradicionais à luta. “Ele faz parte de um universo de grupos de esquerda comunistas da América Latina. A diferença é que aqueles que seguiram a linha da União Soviética eram mais reformistas, enquanto os que se inspiraram na China aderiram com mais ênfase à luta armada guerrilheira. O Sendero Luminoso pode ser comparado ao PCdoB durante a Guerrilha do Araguaia no Brasil ou às ideias de Che Guevara e Fidel Castro durante a Revolução de Cuba“, explica Alberto Aggio, especialista em história política da América Latina e professor de história da Unesp.

Porém, o Partido Comunista do Peru – Sendero Luminoso só ganhou relevância em 1980, quando se recusou a participar das primeiras eleições após doze anos de regime militar no país. Foi nesse contexto que o grupo começou a realizar ataques para boicotar o pleito e a atuar também nos centros urbanos. Um dos piores atentado executados pelos terroristas aconteceu justamente no bairro nobre de Miraflores, na capital Lima, onde a explosão deliberada de dois carros causou 25 mortes e deixou mais de 200 pessoas feridas. Além disso, um total de 1.823 casas, 400 empresas e 63 automóveis foram danificados. Outro incidente marcante foi a matança de 69 camponeses de origem ayacuchana em Lucanamarca, que prova a existência de comunidades rurais que eram contra a ideologia do Sendero Luminoso. Como os militares se concentravam em lutar contra o grupo em áreas urbanas, muitas regiões isoladas do Peru tiveram que combatê-lo sozinhas para se protegerem. “O Exército não deu conta de todo o território, então a autodefesa das comunidades rurais que viviam na serra e nas florestas passou a ser uma questão de vida ou morte”, explica Aggio. No final da década de 1980, o grupo já controlava grandes áreas do Peru, mas também tinha se afastado das suas origens maoístas e agora reprimia os próprios camponeses e suas tradições indígenas.

Após essa derrota ideológica, o grupo passou a sofrer perdas materiais com a chegada do ditador Alberto Fujimori em 1990. “Havia um temor real entre a população peruana de que o Sendero Luminoso vencesse a luta armada, mas isso não aconteceu porque o governo de Fujimori foi o mais eficiente no combate ao movimento, com uma combinação de inteligência militar e muita violência. Foi uma luta sanguinária, tanto por parte do Sendero quanto pelo Exército do Peru, que terminou com uma vitória do governo”, relata Aggio. Nos anos seguintes, os guerrilheiros foram praticamente extintos após a prisão de Abimael Guzmán e outros importantes líderes do movimento. Os últimos ataques relevantes do PCP-SL foram contra a Embaixada dos Estados Unidos em Lima no ano de 2002 e o sequestro de funcionários da Argentina que trabalhavam em um gasoduto de Ayacucho em 2003. Acredita-se que, de lá para cá, os poucos remanescentes do grupo utilizaram suas habilidades para proteger os plantadores de coca e os narcotraficantes nas regiões mais remotas do Peru.

A história se repete

Atualmente cumprindo pena de 25 anos por crimes contra a humanidade, Alberto Fujimori se viu obrigado a renunciar em 2000 após seu governo ser alvo de diversos escândalos, incluindo acusações de corrupção, sequestro e assassinato de opositores, influência em veículos de imprensa sensacionalistas e esterilização forçada de mais de 300 mil mulheres, a maioria indígenas e pobres, com ajuda dos Estados Unidos. Apesar de ser considerado um ditador e estar envolvido em tantas polêmicas, no próximo dia 6, sua filha Keiko Fujimori disputará o segundo turno das eleições presidenciais contra o professor e líder sindical Pedro Castillo. Uma das promessas de Keiko, caso seja eleita, é justamente tirar seu pai da prisão através de um indulto. O fato dela estar tão próxima do poder reflete a fragmentação política do Peru e o desespero da população por um líder que consiga certa governabilidade. O último ano foi especialmente conturbado, com três presidentes que não terminaram seus mandatos: o atual Francisco Sagasti entrou após a renúncia de Manuel Merino, que estava substituindo o impeachmado Martín Vizcarra, que por sua vez subiu ao poder após a renúncia de Pedro Pablo Kuczynski.

Porém, conforme destaca o especialista em relações internacionais e professor do Ibmec DF Ricardo Caichiolo, a instabilidade é regra desde a renúncia de Alberto Fujimori, há 21 anos atrás. “Essas duas décadas da política peruana foram marcadas por escândalos de corrupção e todo o sistema político foi afetado. Alejandro Toledo está nos Estados Unidos, livre graças ao pagamento de fiança, e tem contra si um pedido de extradição por conta da acusação de ter recebido propina da Odebrecht; Alan García se suicidou ainda quando corria processo contra ele também por acusação de recebimento de propina da Odebrecht; Ollanta Humala está em liberdade condicional enquanto tramita um processo contra ele que investiga lavagem de dinheiro. Por fim, Pedro Pablo Kuczynski está em prisão domiciliar, também acusado de receber propina da Odebrecht”, aponta Caichiolo. O especialista explica que esse cenário se deve em grande parte ao próprio modelo de governo do Peru. “Na prática, trata-se de um sistema que pode ser considerado semiparlamentar: os presidentes estão à mercê da possibilidade de destituição a partir do momento em que apenas 20% dos parlamentares de um Congresso unicameral [que tem apenas uma câmara legislativa] solicitem ao seu presidente a moção de vaga. Essa proposta precisa do apoio de 40% dos parlamentares para ser aceita e 66% para ser aprovada. Portanto, há uma permanente tensão entre os poderes Executivo e Legislativo”, afirma.

Agora, a polarização nas eleições para o segundo turno entre Keiko Fujimori e Pedro Castillo não só indicam a continuidade dessa instabilidade política como também trazem a possibilidade de implementação de um regime linha-dura, independente de quem for o vencedor. “Esse temor já está presente em boa parte da sociedade peruana. Em uma pesquisa realizada por uma consultoria do país no final de abril, 42% dos eleitores responderam que se Castillo vencer, o país terá um governo como o da Venezuela, enquanto 49% responderam que se Fujimori ganhar, o Peru terá um governo autoritário”, afirma Caichiolo. Para Alberto Aggio, a vitória de Fujimori seria uma espécie de regressão para o Peru. “Ela representa o sentimento de que o autoritarismo fujimorista é necessário para resolver os conflitos da sociedade peruana”, diz. Com o recente ataque do Sendero Luminoso, os apoiadores de Keiko tem tentado disseminar a ideia de que ela será mais efetiva no combate ao grupo terrorista, como seu pai foi no passado.

Uma esquerda atípica

O concorrente de Keiko Fujimori, Pedro Castillo, é um professor sindicalista que já liderou greves em escolas e agora faz parte do partido marxista Peru Libre. Fã declarado do ex-presidente da Bolívia, Evo Morales, ele está baseando sua campanha na promessa de mudanças estruturais que supostamente resolveriam os problemas econômicos do país. Porém, boa parte dos eleitores temem que essas reformas aconteçam de forma autoritária e sem avanços do ponto de vista social. “Castillo não compactua com inúmeras demandas da esquerda ocidental, como igualdade de gênero, legalização do aborto ou direitos da comunidade LGBT. Ou seja, ele é de uma esquerda em que ainda pesa o tradicionalismo. Para se legitimar, então, ele apela para radicalizações no plano econômico, com afirmações de que vai estatizar tudo ou implementar impostos sobre grandes fortunas, por exemplo”, explica Aggio. Ricardo Caichiolo acrescenta que, do ponto de vista internacional, Castillo recebe o apoio do atual presidente da Bolívia, Luis Arce, de Evo Morales, e do ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica. “Por outro lado, faz questão de se afastar ao máximo de qualquer tipo de apoio por parte do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro. Castillo recentemente declarou que não é nem comunista e nem chavista, e que não imporá a realização de uma Assembleia Constituinte, como fez Maduro. Ou seja, ele vem evitando qualquer sinalização de aceitação de apoio que poderá impactar negativamente sua campanha eleitoral”, afirma o especialista.

Da mesma forma, Castillo está negando as acusações feitas pelos apoiadores de Fujimori de que ele teria alguma relação ou proximidade com o Sendero Luminoso. O político não só foi o primeiro a condenar o ataque como também fez questão de afirmar que fez parte dos grupos rurais que lutaram para se defender do PCP-SL no passado. De fato, os especialistas entendem que o grupo comunista maoísta “ressurgiu” no último dia 23 não para apoiar Castillo, mas sim para rechaçar Fujimori, filha do ditador que quase causou o seu extermínio. Além disso, o Sendero Luminoso deixou claro no panfleto deixado na cena do crime que é contra a realização das eleições, relembrando que os seus primeiros ataques foram justamente para boicotar o pleito de 1980. “O recente ataque em Vraem foi uma ação deliberada dos remanescentes do PCP-SL contra o fujimorismo. Caso Keiko seja eleita, o grupo e suas ações terroristas devem voltar a assombrar o Peru de maneira mais agressiva. Porém, o Sendero Luminoso não necessariamente deixará de atuar com uma possível vitória de Castillo. É difícil saber ainda qual é a estratégia deles”, conclui Aggio.

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