Conheça os mandatos coletivos que estreiam na Câmara dos Vereadores de São Paulo em 2021

Com pautas que vão do antirracismo à não-privatização, Bancada Feminista e Quilombo Periférico projetam oposição ao governo de Bruno Covas (PSDB)

  • Por Lorena Barros
  • 01/01/2021 09h49
Quilombo Periférico e Bancada Feminista / Divulgação Quilombo Periférico (acima) e Bancada Feminista iniciam mandato na Câmara dos Vereadores

As candidaturas coletivas – modelo de possível mandato em que um indivíduo se compromete a compartilhar decisões com uma rede de colaboradores – apareceram timidamente nas urnas brasileiras em 2016, se popularizaram no pleito eleitoral de 2018 e ganharam terreno na vereança da cidade de São Paulo nas últimas eleições. No ano de 2020, dois dos 55 nomes eleitos à Câmara Municipal da cidade mais populosa do Brasil são formados por coletivos: o Quilombo Periférico, com ativistas do movimento negro nas periferias da cidade, e a Bancada Feminista, grupo que defende a pluralidade das pautas voltadas para mulheres. Além das jornadas de militância e de serem filiados ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), os grupos têm em comum o desejo de ocupar o Legislativo com corpos e pautas diferentes das habituais. Nas eleições que venceram, as candidaturas coletivas tentam engrossar as baixas estatísticas que mostram uma casa composta por 24% de mulheres e 20% de pessoas pretas ou pardas diante de uma cidade formada por 52,4% de população feminina e 35,3% de negros.

Apesar de não seguir uma “regra legal”, as candidaturas coletivas funcionam na prática como qualquer outra, tendo direito a um voto nas pautas da Câmara Municipal. Nos bastidores, porém, elas são formadas por um grupo de pessoas, alocadas em cargos oficiais dentro dos gabinetes, que delibera sobre as decisões. No caso do Quilombo Periférico, o grupo é formado por seis pessoas; na Bancada Feminista, por cinco. Todos os cargos ocupados dentro do gabinete pelos co-vereadores são de funções já existentes, que provavelmente seriam preenchidos por assessores comissionados indicados pelo candidato eleito. “Nós cinco vamos trabalhar presencialmente. A Silvia [Ferraro], que foi a pessoa escolhida para ser a representante no parlamento, é quem vai proferir os votos, quem vai estar presente nas sessões junto com alguma de nós. Eu não sei se todo mundo sabe, mas o parlamentar pode estar sempre com um assessor junto dele nas sessões, então vamos fazer um rodízio. Mas todas nós estaremos sempre no gabinete da Bancada Feminista”, explica a co-vereadora Dafne Sena em entrevista à Jovem Pan.

Além de participar das reuniões e sessões em conjunto, os grupos também deliberam sobre pautas e decidem as votações em encontros internos antes de chegar com o voto pronto no parlamento. “Na prática, o que acontece é que as decisões que a gente precisa tomar, nas comissões, na liderança, na elaboração de projeto, fiscalização, todas elas são discutidas entre os seis co-vereadores. As decisões também são coletivas, então a gente trabalha junto na Câmara”, explica Elaine Mineiro, que representou nas urnas o Quilombo Periférico. Para o mandato, a ideia é que a população das regiões mais extremas de São Paulo seja por eles representados nas votações parlamentares.

Mesmo causando estranhamento para alguns, o modelo de mandato coletivo já funciona em outros locais do país, inclusive no próprio estado de São Paulo, com a Bancada Ativista, grupo de nove pessoas eleito para a Assembleia Legislativa com mais de 140 mil votos. “Eles não vão pleitear cinco votos, não vão pleitear nove votos, vão pleitear um voto, que é o daquela pessoa que está encabeçando aquele grupo ou a pessoa que foi eleita de fato”, lembra André Luiz Marques, coordenador executivo do Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper. Para o especialista, não há motivos para questionamentos jurídicos e a prática deve ser encarada como um exemplo de decisões coletivas que já ocorrem na sociedade. “No final do dia, cada vereador que está ali na Câmara, independentemente de estar em uma representação coletiva ou não, representa uma coletividade. Ele teve lá vinte, trinta, quarenta, cinquenta mil votos, então, de qualquer maneira, ele está representando essas pessoas”, analisa.

No caso específico de São Paulo, as candidaturas coletivas escolhidas pela população foram de um partido de esquerda. Durante a corrida eleitoral, porém, outros coletivos, como o “Todos Pela Acessibilidade”, do PSDB, concorreram ao pleito. Os tucanos defendiam os direitos das pessoas com deficiência. Para o especialista, quanto mais a coletividade for escutada e estruturada dentro das políticas públicas, melhor. “A pior coisa que você pode ter é uma Câmara dos Vereadores ou uma Assembleia Legislativa que é toda uniforme. Qualquer lugar que você tenha, seja num plenário do Legislativo, seja numa sala de aula, em qualquer lugar que seja, é comprovado isso: quanto mais diversidade você tem nesses debates, melhor o resultado final. Então, essa múltipla participação é fundamental para que a gente possa ter uma representação mais clara da sociedade”, avalia André Luiz Marques.

O que as candidaturas coletivas esperam para os próximos anos?

Apesar de formarem minoria dentro da Câmara, as duas candidaturas comemoram o avanço de nomes da esquerda em relação ao pleito eleitoral municipal anterior. O PSOL, que antes tinha duas cadeiras na casa, agora conta com seis mandatos. Entre eles, o de uma mulher preta e o de uma mulher trans. “O fato das duas candidaturas coletivas que foram eleitas serem profundamente enraizadas em movimentos sociais só demonstra que a gente precisa estar mais lá, nos espaços de poder. Então, mais dos nossos corpos femininos, mulheres trans, pessoas negras, todos nós temos que estar lá, mas não de uma forma a contribuir com quem sempre esteve lá, contribuir com o plano neoliberal de governo, que é o dominante hegemônico em São Paulo. É estarmos lá com o programa político que venha do povo”, lembra a representante da Bancada Feminista. Para o Quilombo Periférico, as eleições de 2020 também demonstram um avanço em pautas identitárias. “Em toda a história da cidade de São Paulo a gente teve apenas duas vereadoras negras e de maneira eletiva, com nome no cargo, o PSOL fez três mulheres negras, mais outras mulheres negras compondo as bancadas [em 2020], então isso já é um grande ganho, e a gente precisa exaltar e ficar feliz por isso”, destacou Elaine. Mesmo com motivos para comemorar, os dois grupos afirmam que não haverá caminhada fácil sendo oposição nos próximos anos.

Bancada feminista: das pautas plurais das mulheres à não-privatização

Eleita com 46.200 votos, a Bancada Feminista é formada por Silvia Ferraro, professora de história e ativista da Frente do Povo Sem Medo; Paula Nunes, ativista do movimento de juventude Afronte e do movimento negro desde 2012; Carolina Iara, travesti intersexo que convive com o vírus HIV há seis anos, mestranda em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC; Dafne Sena, trabalhadora de aplicativos, militante ecossocialista e vegana; e Natália Chaves, formada em letras, tradutora, militante ecossocialista e também vegana. O grupo aguarda um primeiro ano difícil diante dos efeitos da pandemia e sendo oposição a pautas que não consideram positivas para a cidade, como a questão da privatização incentivada pelo município e o estado. “Isso é uma pauta assumida e é a pauta comum tanto para o governo federal, de Bolsonaro, quanto para os governos estadual e municipal, do PSDB, nas figuras do Doria e do Bruno Covas. Não acho que vão ser anos fáceis, mas serão anos de fortalecimento da voz popular, do poder popular e dos movimentos sociais dentro desses espaços de poder, o que, para mim, é a grande novidade na cidade de São Paulo a partir dessa nova vereança”, afirma Sena.

A co-vereadora acredita que a renovação política proposta pelo mandato é reforçada pela pluralidade de cada uma das participantes. “Nenhuma de nós, sozinha, consegue expressar todas essas necessidades, então a aposta da candidatura coletiva. Nessa diversidade, mulheres com perfis muito diferentes, mas que se encontram numa luta só, foi justamente para isso, para a gente conseguir atender a essa demanda”, afirmou. Para aqueles que têm desconfiança com o modelo adotado pela bancada, ela lembra da necessidade de fiscalizar as candidaturas eleitas nas redes sociais. “Não é porque uma coisa não existe na lei que ela não existe na vida real, na vida das pessoas. As decisões sendo tomadas coletivamente acontecem o tempo inteiro, desde dentro da sua casa, na sua família, na associação dos moradores… Acontece o tempo inteiro. Não é porque a lei não prevê que elas não existem.” Segundo Sena, uma das pautas que a bancada também assumirá é a do reconhecimento da candidatura coletiva na prática.

Quilombo Periférico: trabalho de base, representatividade e continuidade à luta de Marielle

A chapa coletiva Quilombo Periférico, formada por Erick Ovelha, Samara Sosthenes, Elaine Mineiro, Débora Dias, Júlio Cezar e Alex Barcellos, foi eleita com 22.700 votos. Todos os seis membros do grupo têm histórico de envolvimento com movimentos sociais e encaram o posto de oposição adquirido dentro da Câmara como a possibilidade de discutir outro projeto de país e de cidade com o trabalho de base. Em um estado cujos dados de segurança pública mostram a população negra como mais vulnerável, o grupo também deseja usar o espaço conquistado nesta eleição para falar sobre a existência do racismo e a vulnerabilidade dos povos periféricos com aqueles que estão fora da bolha militante que o elegeu.

“Por mais que boa parte da população tenha contato com esse discurso de que não há racismo, na prática as pessoas sabem que ele existe, então trabalhar e conseguir mostrar para a população que o racismo não deriva de um acaso, mas, sim, de um projeto político que foi construído e que pode ser desconstruído, é tarefa nossa de militante, de movimento negro, de movimento de periferia. O nosso posicionamento é desse diálogo, principalmente com essa população que acaba indo nesse curso”, afirma Elaine Mineiro. A co-vereadora cita conquistas recentes de pautas do movimento antirracista, como suspensão por parte do Senado de portaria da Fundação Cultural Palmares que retirava 27 nomes da Lista de Personalidades Negras como exemplo da importância da representatividade nos âmbitos políticos. “A elaboração e a contribuição da população negra, da população LGBTQI, das mulheres, da periferia e da classe trabalhadora nessa cidade vem representada nesses nomes. Guarda essa esperança e tem a responsabilidade de traduzi-la no trabalho dentro da Câmara dos Vereadores”, disse. Para o mandato, o grupo espera levar ao plano municipal as pautas que tem elaborado nas bases periféricas. “A gente acabou de lembrar dos mil dias sem resposta ao assassinato da Marielle e do Anderson. Então, esperamos levar adiante tantas pautas que elaboramos enquanto movimento, como a agenda da Marielle. São coisas importantes nas quais gente vai se dedicar durante esses quatro anos.”

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