Principal canal para fake news, Telegram resiste a mudanças e pode ser banido no período eleitoral

Aplicativo atendeu a decisão judicial do ministro Alexandre de Moraes que previa sua suspensão, mas ignorou demandas do Ministério Público Federal e do Tribunal Superior Eleitoral

  • Por Eduardo Morgado e Luis Filipe Santos
  • 06/03/2022 10h30
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Reprodução / Telegram Telegram é considerado principal alternativa ao WhatsApp Telegram permite canais com milhões de inscritos e não há limites para compartilhamentos como no WhatsApp

O compartilhamento de notícias falsas é uma das principais preocupações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para as eleições deste ano que ocorrerão no Brasil. Em razão disso, uma plataforma de comunicação se tornou alvo da Corte: o Telegram. Alternativa ao WhatsApp e com possibilidade de canais de transmissão muito maiores que as do concorrente, o aplicativo russo tem sido usado para a disseminação de fake news. Além disso, as tentativas de diálogo das instituições brasileiras com representantes do app não foram respondidas, diferente do ocorrido em outras redes sociais, como Facebook, Twitter, Instagram, TikTok e o próprio WhatsApp. A situação levou o ex-presidente do TSE, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luis Roberto Barroso, a afirmar que é cogitada uma suspensão do Telegram no Brasil durante o período eleitoral. O atual presidente do tribunal, Edson Fachin, citou o combate às notícias falsas como um dos desafios para garantir que o pleito ocorra com tranquilidade. O ministro Alexandre de Moraes, vice-presidente do Tribunal e que estará à frente da Justiça Eleitoral nas eleições, determinou no mês de fevereiro o fechamento de alguns canais e, caso não o fizesse, o aplicativo seria suspenso por dois dias em todo território nacional. Outros países já tiveram que lidar com o problema e o resolveram restringindo canais ou suspendendo a utilização do sistema em seus territórios.

Principal meio utilizado para a difusão de notícias falsas na eleição de 2018, o WhatsApp passou por algumas mudanças para inibir e dificultar o compartilhamento dos conteúdos não verídicos: um grupo pode ter no máximo 256 membros, e uma mensagem não pode ser encaminhada para mais de cinco conversas ao mesmo tempo; caso seja uma mensagem marcada como “encaminhada com frequência”, ela só pode ser repassada para mais uma conversa. O Telegram, por sua vez, não tem restrições desta natureza. Pelo contrário. Os grupos criados no aplicativo podem ter até 200 mil membros e, caso a intenção seja atingir um número maior de destinatários, é possível abrir um canal sem limite de participantes. Além disso, os envios de conteúdo podem ser realizados de maneira desenfreada. Por outro lado, é mais fácil de localizar a origem de um determinado material no sistema russo do que nos outros programas de trocas de mensagens.

“O Telegram cria números de identificação para cada usuário, para grupos e para canais, possibilitando que pesquisadores e investigadores localizem a origem de um conteúdo através desses indicadores. Dessa forma, é mais fácil descobrir a origem de um conteúdo no Telegram que nos demais comunicadores de mensagens instantâneas. Os maiores desafios estão nos grupos com mais de 1 milhão de inscritos. Nesse caso, porém, sabendo-se quem é o responsável pelo grupo, qualquer ajuda da plataforma que o hospeda é absolutamente desnecessária do ponto de vista jurídico”, analisa o professor Alexandre Basílio, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político e analista judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul.

 Para efeitos de comparação, em outubro de 2021, o presidente Jair Bolsonaro atingiu a marca milionária de audiência em seu canal no Telegram – atualmente, são quase 1,1 milhão de assinantes. A diferença para os demais pré-candidatos ao Palácio do Planalto chama a atenção. Líder de todas as pesquisas de intenção de voto, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) conta com 47 mil inscritos. O pedetista Ciro Gomes compartilha seu conteúdo para 19 mil espectadores. Sérgio Moro (Podemos), por sua vez, divulga suas atualizações para 5 mil pessoas.

 Outro ponto é que as mensagens, muitas vezes, só atingem quem já está disposto a acreditar nelas. É o que defende o cientista político Alberto Carlos Almeida. “Do ponto de vista técnico, o que a psicologia política, cognitiva e decisória mostra é que isso [as fake news] atinge quem já está decidido. Eu participo de grupos que contém publicações à esquerda e à direita. Ninguém lê nada. Não há nem interação. Eu já testei: se você pegar uma postagem e fazer um comentário, ninguém rebate. Há tanta postagem que ninguém lê. As postagens extremistas são tão absurdas, da direita e da esquerda, que obviamente só aplaudem os convertidos”, relata o autor do livro “A Cabeça do Eleitor”.

Além disso, há dúvidas se uma suspensão teria efeitos concretos. Por um lado, os usuários podem buscar uma VPN (virtual private network), ou seja, uma conexão de internet privada registrada em um outro país onde o aplicativo russo seja permitido – como alguns internautas fizeram nos episódios em que a Justiça determinou a suspensão do WhatsApp. Ou, de forma mais simples, podem buscar outros aplicativos para continuar com a transmissão de mensagens. “Se o TSE bloquear o Telegram, do ponto de vista técnico, é um problema facilmente superável por quem quiser continuar utilizando a aplicação. Ademais, ainda que a aplicação fosse efetivamente banida, quanto tempo demoraria para que surgisse algo semelhante?”, questiona Alexandre Basílio.

O debate sobre liberdade de expressão também tende a se expandir com o possível bloqueio do aplicativo de mensagens. “Uma coisa é dizer que a mentira interfere no resultado. Outra coisa é dizer que é melhor para a sociedade que ela busque a verdade. Para resgatar a discussão da liberdade de expressão, temos que sempre lembrar que a liberdade de expressão tem várias restrições o tempo inteiro”, avalia Almeida, citando como exemplo os limites a advogados em tribunais do júri nos Estados Unidos. “Porque a base da liberdade de expressão, a figura mais importante, o filósofo John Stuart Mill, dizia: se tiver um que discorde, a unanimidade menos um, você precisa preservar o direito desse um de se expressar. Mas ele não imaginava que esse um iria mentir de maneira deslavada. Ele imaginava que esse um teria o mesmo objetivo de todos que discordam dele. A busca pela verdade”, completa.

Dificuldades em comunicações oficiais

Outro problema na relação com o Telegram é o aplicativo não responder a comunicações de órgãos oficiais brasileiros, como o próprio TSE. Em nota enviada à Jovem Pan, a Corte informou que enviou um ofício ao diretor-executivo da empresa, Pavel Durov, mas não obteve resposta. Um documento chegou a ser enviado para a sede da empresa em Dubai, mas foi ignorado. O Ministério Público Federal de São Paulo (MPF-SP) questionou o Telegram, Twitter, Facebook, Instagram, TikTok, WhatsApp e YouTube sobre as ações que tomariam para evitar a disseminação de notícias falsas em suas plataformas. Só os responsáveis pelo aplicativo russo não se manifestaram.  O MPF-SP disse que as respostas das redes ainda estão sendo analisadas, e que ainda busca o diálogo com a plataforma sediada nos Emirados Árabes Unidos. A Procuradoria paulista estuda quais medidas serão adotadas como punição, caso não obtenha resposta.

Para Alexandre Basílio, a tentativa de diálogo com o aplicativo esbarra na ideia da empresa de preservar a liberdade de expressão. “O Telegram tem como filosofia a máxima proteção à liberdade de manifestação do pensamento. Isso tem sido muito útil em países que sofrem com a censura imposta por ditadores. Ao mesmo tempo, como todas as tecnologias criadas pela humanidade, essa segurança quanto ao sigilo pode ser utilizada para o mal, incentivando terroristas e outros criminosos a se comunicarem pela aplicação, conforme vem acontecendo. Segundo o criador do aplicativo, mensalmente são removidos milhares de canais relacionados a terrorismo e outros crimes semelhantes, principalmente do Estado Islâmico. Ainda assim, o próprio Telegram tem dificuldade de realizar esse controle, pois é possível espelhar um canal em réplica do original. Quando o original é banido, a réplica assume com outro nome e número de identificação, gerando um trabalho que se assemelha ao Mito de Sísifo”, explica. Sísifo foi um personagem da mitologia grega condenado a subir um morro carregando uma pedra; sempre que estava próximo de seu objetivo, a rocha caía e o obrigava a reiniciar o trabalho. 

“O Brasil pode bloquear, se quiser. Uma empresa só pode atuar em um país se seguir as regras do local. A internet não é terra sem lei. Por exemplo: existe uma movimentação do Facebook, que cogita sair da União Europeia, porque não aceita a obrigação da UE com a GDPR, uma proposta que define que os dados devem ser tratados na Europa, não podem ser levados para os Estados Unidos. O Telegram está sendo distribuído em nível mundial, é oferecido em português e existem colaboradores que atuam como operadores de canais, então opera no Brasil”, comenta Wilson Roberto, especialista em direito digital.

Outros países já viveram problemas parecidos. China, Bahrein e Irã o baniram para evitar a organização de protestos contra os respectivos governos. Mesmo assim, a plataforma segue sendo utilizada através de VPNs. Rússia, Cuba, Tailândia e Paquistão bloquearam o aplicativo temporariamente em algumas ocasiões, mas liberaram novamente sua utilização. Já Belarus, Indonésia, Azerbaijão e Índia determinaram o bloqueio de alguns canais que consideram extremistas ou terroristas, de acordo com os parâmetros de cada governo. 

A Alemanha se uniu a esse grupo no último dia 13 de fevereiro, ao conseguir conversar com representantes do Telegram para excluir 64 canais considerados desinformativos ou que agregavam discursos de “ódio e incitação”. Após o contato com a empresa, a ministra do Interior da Alemanha, Nancy Faeser, disse que continuará seu esforço para que a plataforma coopere com as leis alemãs ao Süddeutsche Zeitung, e afirmou que há crescentes ondas de “ódio” na plataforma, bem como “ameaças contra o povo e a democracia”. “O Telegram não deve mais ser um acelerador para extremistas de direita, teóricos da conspiração e outros agitadores. Ameaças de morte e outras mensagens perigosas de ódio devem ser apagadas e ter consequências legais. A pressão está funcionando”, acrescentou Faeser. Além da suspensão, o governo alemão ameaçou a empresa de envio de mensagens com uma multa de 55 milhões de euros (R$ 305 milhões).

No Brasil, Alexandre de Moraes determinou a suspensão de canais do Telegram e fixou a multa em R$ 100 mil por dia por perfil que não fosse bloqueado, além de cogitar banir o app por inteiro. A decisão atingiu três canais ligados ao jornalista Allan dos Santos, que já teve sua prisão decretada por Moraes no âmbito do inquérito das fake news. “O uso do Telegram se revela como mais um dos artifícios utilizados pelo investigado para reproduzir o conteúdo que já foi objeto de bloqueio nestes autos, burlando decisão judicial, o que pode caracterizar, inclusive, o crime de desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito (art. 359 do Código Penal). A utilização de vários perfis, criados com a intenção de se esquivar dos bloqueios determinados, tem sido prática recorrente de Allan Lopes dos Santos para a continuidade da prática delitiva, comportamento que deve ser restringido”, justificou Moraes. De maneira inédita, o aplicativo cumpriu a determinação judicial para evitar sua suspensão em território nacional. 

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