Vacina contra a tirania da certeza absoluta

A vacina chegou, mas foi rejeitada por Hilda Cândida, de 109 anos, que diz querer deixar sua dose para alguém mais jovem; há os cientistas pragmáticos e nada líricos que alertam que alguém não querer se vacinar coloca outros em risco

  • Por Adrilles Jorge
  • 23/01/2021 08h00 - Atualizado em 23/01/2021 11h00
EFE/EPA/Ben Birchall/POOL - 08/12/20 Dose da vacina da Pfizer sendo transferida para seringa A vacinação contra a Covid-19 começou no último domingo com a CoronaVac, desenvolvida pelo Instituto Butantan com o laboratório chinês Sinovac

A vacina chegou. Como um milagre em projeção e espera, espera-se, esperançosamente, que a vacina seja uma cura – tanto para o vírus como para a doença do medo de morrer – que por quase um ano nos tem impedido, em boa parte, de viver. A vacina chegou. Mas foi rejeitada por uma senhora de 109 anos, Hilda Cândida, que diz que já viveu demais e quer deixar sua dose pra quem possa ter um futuro mais alargado pela frente. Dona Hilda diz isto sorrindo, sem nenhuma mágoa ou ressentimento, antes aproveitando cada momento que lhe resta e reiterando que sempre gostou das coisas boas da vida. Cada momento que nos resta pode ser um último – seja dos 20 aos 100 anos. E é único. Não volta. A velhice não é exatamente boa. A decadência física não é boa. Não se deixe enganar por otimismos estéreis. A perspectiva de um fim iminente não é boa. O homo sapiens tem prazo de duração: dura em média uns oitenta e poucos anos. Uns casos raros como Dona Hilda chegam a mais de cem. Mas a perspectiva do fim é o que nos faz saborear cada momento como se fosse o último. Saber-se mortal melhora cada instante da vida, ainda que amor à vida seja algo superestimado por falta de opções mais claras. Enfim, só temos a vida pra amar. Construir um amor pelo que vale a pena ser amado é o que faz a vida valer a pena.

Temer o fim da vida é que tira o sabor da existência. Durante um ano, nos escondemos da vida por um medo inédito de morrer. Não se vive como uma árvore, estático, dentro de um quarto, com medo do fim. Isto é sobrevida. A vida é um constante enfrentamento de risco. Risco de ser rejeitado, de perder emprego, perder quem se ama, perder o sentido de viver. Viver é sobretudo se arriscar em nome de que e do que se ama. Dona Hilda ama tanto a vida que se arrisca a viver menos por amor à humanidade. Cansada, exausta, um tanto entediada, Dona Hilda abdica de sua dose por talvez um sentimento paradoxal: a exaustão de uma vida comprida somada ao afeto pela continuidade da existência – no outro, no amor pelo outro, que continuará esta nossa estranha espécie que chegou neste estranho momento de escolher entre vida e sobrevida. Sim, há os cientistas pragmáticos e nada líricos que alertam que a vacina oferece uma proteção coletiva. E que alguém não querer se vacinar coloca outros em risco. Dona Hilda e todos os não vacinados seriam vetores matadores em potencial.

Há também a incerteza sobre efeitos colaterais em idosos a médio e longo prazo, incerteza sobre mortos pela vacina na Noruega, incerteza sobre o futuro etc. Um ato de generosidade sem cálculo de risco e percepção da realidade pode ter o efeito contrário ao desejado. Um mártir pode ser um mártir da sua própria ignorância. Como são os mártires da ignorância aqueles que se isolaram e se sacrificaram e pediram sacrifícios em nome de um lockdown sem nenhuma comprovação de eficácia científica. No fim, somos todos mártires de nossas incertezas. Os piores são os que se agarram demais em suas certezas – e as impõem aos outros. Estes são os tiranos da certeza absoluta. Dona Hilda não sabe talvez de todas estas incertezas. Dona Hilda só sabe da incerteza que é viver, e que viver na certeza é sobreviver ao próprio cansaço que gera a vida plena de convicções, sobretudo a convicção de querer viver de qualquer maneira. Dona Hilda se sacrificou em nome de um sentido de vida que é dar a própria vida em nome de um sentido, talvez o único sentido de vida: viver pelo outro.

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