‘Legítima defesa da honra’ é invenção de advogados espertos para livrar assassinos da prisão

Quando uma mulher procura uma delegacia de polícia para fazer uma queixa contra o marido que a espanca, ela pode estar assinando sua sentença de morte, porque a proteção não existe

  • Por Álvaro Alves de Faria
  • 08/01/2021 13h46
Pixabay/Nino Carè mulher se defendendo de agressão No ranking mundial de feminicídio, o Brasil ocupa o 5º lugar, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos

Até que enfim. Coube ao PDT apresentar uma ação que pede o descumprimento do entendimento do Supremo Tribunal Federal no que diz respeito a uma figura jurídica que nem faz parte do Código Penal brasileiro, a famigerada “legítima defesa da honra”. No fundo, esse entendimento dá especialmente ao homem o direito de matar sua mulher ou ex-companheira. Nestes tempos em que o feminicídio se multiplica, resultado de posições principalmente machistas, a tal “legítima defesa da honra” vem sendo usada para livrar muitos criminosos da cadeia. E isso ocorre à luz da interpretação da lei por juízes também machistas que decidem o que bem entendem. O feminicídio é o termo para explicar um crime de ódio contra a mulher. A mulher é assassinada somente por ser mulher. E a lei ampara esses indivíduos assassinos que alegam ter sido traídos em sua honra de homem. Vejam vocês: honra de homem, como se fosse ele, o homem, detentor de todas as virtudes que lhe dão até o direito de matar alguém. E essa defesa da honra é utilizada especialmente no assassinato por menosprezo à condição feminina. A palavra feminicídio foi difundida nos anos 1970 pela socióloga sul-africana Diana E.H. Russel. Ela conseguiu neutralizar no mundo o conceito de “homicídio”, em mortes de mulheres perseguidas por companheiros ou ex-companheiros. Diana Russel mostrou ao mundo a vulnerabilidade do sexo feminino em determinadas circunstâncias. 

Essa figura jurídica “legítima defesa da honra”, que na verdade nem existe, acaba transformando em ré a mulher vítima da violência. No ranking mundial de feminicídio, o Brasil ocupa o 5º lugar, conforme informação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Em assassinatos de mulheres, o Brasil só perde para El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia. Por exemplo: comparando essa posição lastimável com países desenvolvidos, no Brasil se mata 48 vezes mais mulheres do que no Reino Unido. A partir de 2016, o Brasil chegou num número assustador e inaceitável: a cada duas horas, uma mulher é assassinada no país. É bom lembrar que a maioria dessas mulheres assassinadas por homens vivia sendo espancada por companheiros ou ex-companheiros, numa agressão sem fim, de conhecimento da polícia que a vítima procurava (e procura) antes do pior. Mas nada adianta. O agressor continua com as ameaças, sentindo-se no direito de matar a mulher, culpando a vítima pelo crime. 

No primeiro semestre de 2020, pelo menos 648 mulheres foram assassinadas unicamente porque eram mulheres. E nesses casos, o homem assassino sempre se acha proprietário da companheira. O assassinato da juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, na véspera do Natal, no Rio de Janeiro, levou novamente o feminicídio para o STF. A juíza levou 16 facadas diante das três filhas do casal. O pedido para analisar o tema com mais profundidade já foi enviado ao presidente do Tribunal, Luiz Fux, pela Associação Nacional de Desembargadores. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, 403 mil mulheres no Brasil pediram à Justiça alguma medida de proteção só em 2019. Na verdade, quando uma mulher procura uma delegacia de polícia para fazer uma queixa contra o marido que a espanca, essa mulher pode estar assinando a sua sentença de morte. A proteção prometida simplesmente não existe. Compete à mulher sozinha defender-se. Ao acionar o STF, o PDT questionou a constitucionalidade da tese jurídica da “legítima defesa da honra”. Observou que, na base da interpretação de dispositivo do Código Penal e do Código de Processo Penal, os Tribunais do Júri têm aplicado essa tese e absolvido feminicidas, o que deixa a sociedade perplexa. De acordo com o PDT, essa tese admite que uma pessoa, geralmente um homem, mate outra, geralmente uma mulher, para proteger sua honra em relação a uma traição. Mas o partido observa que qualquer interpretação de dispositivos infraconstitucionais que admita a absolvição de assassinos de mulheres por “legítima defesa da honra” não é compatível com os direitos fundamentais à vida. Por fim, o PDT pede ao STF que interprete a Constituição de forma a impedir que assassinos de mulheres fiquem em liberdade. Como se tivessem licença para matar. 

Essa excrescência vem de longe. Especialmente no Brasil. O Código Penal Brasileiro fala em “legítima defesa”, para situar determinados crimes. Mas em nenhum lugar está escrito “legítima defesa da honra”, uma invenção de advogados espertos para livrar seus clientes assassinos da prisão. Pior de tudo é que, quase sempre, nesses casos, a mulher, além de perder a vida, é considerada culpada. Pior de tudo é que esse entendimento foi aceito pelo STF, o que revela bem a ideia machista que domina praticamente todos os setores da vida nacional. Seja como for, o STF e o CNJ afirmam que o assunto será analisado. E tem que ser analisado mesmo. Não pode ser diferente. Não é um favor para ninguém. Basta que tenhamos uma justiça civilizada.

Comentários

Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.