Memorial em homenagem aos mortos da Covid-19 sensibiliza o coração em tempos tão sombrios

Escrever sobre espaço de luto compartilhado em São Paulo parece uma fuga da realidade, mas, neste vale de lágrimas que se transformou o Brasil, um alento se faz necessário

  • Por Álvaro Alves de Faria
  • 27/01/2021 12h22 - Atualizado em 27/01/2021 14h00
Leone/O Fotográfico/Estadão Conteúdo - 25/01/2021 O ipê e o globo terrestre, que conta com uma cápsula do tempo, são simbolizados no monumento paulistano em homenagem aos mortos por Covid-19

Tempo de notícias ruins. Chega um momento em que parece que todas as notícias são ruins. Confesso que, jornalista a vida inteira, sempre gostei de notícia ruim. É o que mais se vê no noticiário. De vez em quando, tenho uma recaída e procuro um assunto mais ameno para os dias que correm destruindo sentimentos. Peço que minha editora na Jovem Pan releve este momento em que procuro um tema para melhorar um pouco minha cabeça. Vasculhei a gaveta de tantos infortúnios do dia a dia e me deparei com algo que pensei suavizar um pouco o ambiente. Aproveitando seus 467 anos comemorados na segunda-feira, 25, São Paulo marcou a data com a inauguração do Memorial em Homenagem às Vítimas da Covid-19. Não modifica o estado da ausência do ente querido que se foi. Mas chega a ser um alento num país em que a doença é tratada com extremo desprezo por aqueles que deviam passar confiança à população.

O memorial conta com uma cápsula do tempo e foi construído pela Prefeitura de São Paulo em parceria com o Ministério Público, no Parque do Carmo, Zona Leste da cidade, ao lado de dois outros parques onde se iniciou o plantio de 6.000 árvores como parte dos projetos Avarc (Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflito) e Hígia Mente Saudável. Dá a impressão de que tocar num assunto assim é querer fugir da realidade. Pode ser, sim. Até porque está difícil encarar essa realidade todos os dias e triturar as pessoas escondidas dentro de si mesmas. Faltou-nos um líder para lidar com esse mal. E além de faltar um líder, propagou-se a doutrina do negacionismo, como se tudo fosse uma invenção.  A grande escultura de metal do memorial simboliza um ipê branco, árvore que tem uma floração curta e intensa e representa força e resilência. Sua flores no chão formam um tapete de imensa beleza. Dentro de um globo terrestre, há uma cápsula do tempo. Nestes tempos de autoestima baixa e de tristezas profundas, é bom se deparar com uma notícia assim, que nos faça respirar um pouco. Só um pouco. Mas o suficiente para saber se ainda vivo num mundo destruído em seus valores, num país que perdeu seus rumos faz tempo.

A coordenadora dos projetos, promotora Celeste Leite dos Santos, diz que a ideia foi criar um espaço para que as pessoas pudessem refletir sobre tudo que viveram diante da morte de parentes e amigos. Observa que faltava na cidade um espaço de luto compartilhado entre os que não tiveram sequer o direito de realizar um velório. No globo serão colocadas as histórias dos que perderam a vida para o vírus. Essas vidas se transformaram em sementes por mil peças QR Code. Cada uma mostra a vida dessas pessoas que não resistiram à doença. A cápsula será aberta só daqui a cem anos. Só assim as futuras gerações poderão saber o que de fato aconteceu durante a pandemia, iniciada em 2020. Dentro da cápsula, também foram colocadas cartas de autoridades brasileiras que representam os relatos oficiais. Os projetos Avarc e Hígia já prestaram assistência espiritual, psicológica e jurídica a mais de 250 mil pessoas que tiveram Covid-19 ou perderam um parente, com a participação de 25 promotores e mais de 200 voluntários. O prefeito Bruno Covas diz que pretende plantar uma árvore nativa da Mata Atlântica para cada vítima do coronavírus na cidade de São Paulo, como araçá, ipê branco, pitanga, paineira, cereja-do-rio-grande e outras.

Diante de uma notícia assim, confesso que fico até um pouco sem jeito com a coluna que aqui assino. As pessoas estão envolvidas em sombras e medo, caminham cuidadosamente pelas ruas para fugir de um inimigo invisível que ataca em todo luar. De forma que escrever uma coluna assim me soa estranho. É uma questão de sensibilidade. E emotividade. De lembrar de pessoas que não existem mais, mas ainda vivem na memória de outras, entristecidas com tudo, porque nessa questão o país caminha na contramão — faz questão de caminhar na contramão — por determinação de governantes que não conhecem a dor do outro, fazem questão de desconhecer. Tento as palavras leves, tais como as de Cecília Meireles, por exemplo: “Aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e voltar sempre inteira”. Tomara que seja assim. É uma trégua que necessitamos neste vale de lágrimas em que se transformou o Brasil, num caminho que parece não ter volta.  

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