No ‘novo normal’, o que vale é a lei da violência

Situações como a morte das primas Emily e Rebeca no Rio de Janeiro, e o policial apontando para o colega de farda em São Paulo deixam evidente um quadro cada vez mais sombrio no Brasil

  • Por Álvaro Alves de Faria
  • 07/12/2020 11h23
Policiais militares brigaram no centro de São Paulo na última sexta-feira

As cenas da cidade de São Paulo são cada vez mais assustadoras. De São Paulo e demais capitais brasileiras. Parece que o mundo perdeu o bom senso e partiu de uma vez para a brutalidade. Com o advento do maldito celular, os amigos desapareceram. Se cinco amigos decidirem almoçar juntos, podem ter certeza: no restaurante, os cinco estarão falando ao celular com alguém que não está presente. Aquele toque de afeto entre as pessoas desapareceu. São poucos os que ainda guardam algum respeito pelo outro. Hoje ouvimos notícias como aquela do ônibus e a carreta, no interior de São Paulo, em que 42 pessoas morreram. Há, digamos, um pequeno espanto inicial mas, a seguir, o fato não merece mais qualquer outra consideração. Alguns dias depois, em Minas Gerais, um ônibus caiu de um viaduto de 35 metros de altura: 19 mortos. Novamente, um pequeno espanto. Depois, tudo volta ao normal. No caso, foram dois acidentes.

Tudo indica que cenas assim já fazem parte de nosso triste cotidiano, em que os valores estão todos invertidos, não existe quase mais nada que nos dê um pouco de alento. Algum gesto de solidariedade tornou-se praticamente impossível de ver. Viver passou a ser uma aventura mesmo, como disse a escritora norte-americana Hellen Keller: “Viver é uma aventura ousada ou não é nada”. E também João Guimarães Rosa: “Viver é um negócio muito perigoso”. E é. Uma aventura que, nos tempos atuais, quase sempre não termina bem. Você abre o jornal e lê que duas meninas, primas, de 4 e 7 anos, foram mortas num tiroteio em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. O crime aconteceu na comunidade de Santo Antonio. Emily Victória, de 4 anos, foi baleada na cabeça. Rebeca Beatriz Rodrigues dos Santos, de 7 anos, levou um tiro no abdômen. As meninas estavam brincando na calçada em frente às suas casas. De repente, um tiroteio entre bandidos e policiais, como sempre. E, como sempre, a polícia afirma que não atirou. Não se sabe mais quem é quem nessas histórias. Duas meninas mortas. Só neste ano, 22 crianças foram mortas por balas perdidas no Rio de Janeiro. Isso é desesperador: Emily faria 5 anos nesta semana, tinha até um vestido novo para usar na pequena e pobre festa de aniversário. A família decidiu enterrar a menina com o vestido novo, que ela nunca usou.

O que vai acontecer agora? Não vai acontecer nada. Haverá aquele procedimento administrativo, aquela coisa que se arrasta por muito tempo e nada mais. As duas meninas serão somente mais um número nessa relação de angústias de todos os dias. É um quadro tenebroso. Os assaltos acontecem em todo lugar, a toda hora, até na Avenida Paulista, em São Paulo, diante de todo mundo. E não vamos nos esquecer do brutal assassinato por espancamento do cidadão negro João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, num supermercado em Porto Alegre. Os assassinos eram seguranças do estabelecimento e espancaram até a morte. Sim, muita indignação e manifestações. Depois o esquecimento e tudo volta ao normal. Não me sai da cabeça – e isso explica bem o que quero dizer – a cena do PM com a arma no rosto de outro policial da corporação. Foi na sexta-feira, 4, na região da Rua Santa Ifigênia, no centro de São Paulo. Havia até uma grande plateia assistindo. Essa imagem não me sai da cabeça. O PM encostou a arma no rosto de seu colega ameaçando-o de morte. Foi preso em flagrante. O Comando da Polícia Militar em São Paulo classificou o ato como “gravíssimo e repulsivo”. Tudo bem. E daí? Daí nada. É assim que funciona. De qualquer maneira, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo afirmou que os dois agentes foram afastados do policiamento nas ruas. Está preso o que encostou a arma no rosto do colega, xingando muito e fazendo ameaças de atirar. Aqueles valentões que andam por aí em todo lugar.

O Comando da PM distribuiu nota, diante da gravidade da ocorrência, dizendo que a ameaça com arma em punho “viola frontalmente os valores fundamentais da instituição, especialmente a disciplina, a hierarquia, o profissionalismo, a honra e a dignidade humana, exigindo, assim, punições severas”. Palavras bonitas que todo mundo está cansado de ouvir. A pergunta é: Como é que a Polícia Militar aceita um sujeito assim para fazer o patrulhamento na cidade a fim de proteger as pessoas? Como é que a Polícia Militar escolhe os homens que vão servir a população? Os outros policiais presentes a essa cena lastimável ficaram observando. Só observando. As pessoas – sem generalizar – perderam mesmo o senso. O que vale atualmente é a lei da violência. Um quadro sombrio. Cada vez mais sombrio. Será efeito da pandemia? Ou todos estamos enlouquecendo? Afinal, esse é o mundo a viver todos os dias. Sem generalizar, evidentemente, acredito no que dizem os franceses: “A polícia está doente por dentro”. Viver é mesmo uma aventura. Talvez já estamos vivendo o “novo normal”.

Comentários

Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.