Cidades menos barulhentas, população mais saudável 

Estudos e relatórios provenientes de pesquisas na área da saúde comprovam que, para além do incômodo, barulhos contínuos geram consequências que levam à morte; não é achismo, é ciência

  • Por Helena Degreas
  • 28/06/2022 09h00 - Atualizado em 28/06/2022 14h31
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Drazen Zigic/Freepik Homem branco de bigode e cavanhaque, bem vestido,coloca a mão no ouido e tenta falar no celular no ônibus A emissão de ruídos em zonas residenciais não deve ultrapassar os 55 decibéis no período diurno e 50 decibéis no período noturno

A poluição sonora permeia a vida cotidiana daqueles que vivem em cidades grandes e regiões metropolitanas, influenciando a maneira como percebemos os espaços públicos. Para muito além da visão, os sons produzidos nas cidades podem alterar a compreensão dos ambientes urbanos, disseminando-se por ruas e bairros, tornando-os agradáveis ou agressivos. O povoado em que habitaram meus ancestrais é marcado pelo som do mar batendo nos rochedos, pelo farfalhar das folhas das oliveiras que “avisam” a chegada das chuvas e pelo badalar dos sinos, que, pendurados nos pescoços de cabras, permanece o mesmo há centenas de anos. São resquícios de uma história que é parte do meu DNA.

Parece um tema supérfluo, mas não é. São memórias. Toda vez que escuto um “blém, blém”, lembro-me daquele lugar. Em coluna recente, comentei sobre cartografias sonoras, que, amparadas pelas diretrizes de preservação do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade (Iphan), pretendem conscientizar as populações sobre a importância de salvaguardar patrimônios intangíveis como componentes que representam a diversidade cultural dos povos. Mencionei o papel desempenhado pelo parlamento francês, que pretende transformar o canto dos galos e o badalar dos sinos das igrejinhas em patrimônio rural de algumas regiões, protegendo-os de eventuais mudanças provocadas pela expansão urbana e pelos comportamentos turísticos que venham a alterar uma qualidade que caracteriza e empresta valor a estas regiões. O ambiente sonoro é a “cara” do lugar. E a população, juntamente com o parlamento, ainda quer manter essa característica por muito tempo.

Já em Istambul, na Turquia, autoridades locais vêm se interessando pelas pesquisas desenvolvidas por Oğuz Öner, PhD pela Istanbul Technical University e que estuda a relação entre ambiente sonoro, cultura e pessoas. Há anos ele promove uma caminhada conhecida como “Soundwalks”, em que coleta, analisa e gera diagnósticos dos dados de usuários, criando um mapa sonoro do centro de Kadıköy. Pretende-se que, em algum momento, suas descobertas integrem o processo de planejamento urbano da cidade, mapeando suas qualidades sonoras únicas. De lá, lembro dos sons emitidos pelos sinos dos minaretes que anunciam as cinco preces diárias à população. É uma sensação mágica, encantadora e que me lembra a sensação de acolhimento e paz. A informação não visual define o caráter de uma cidade e afeta a habitabilidade dos bairros e cidades. Feche os olhos por alguns minutos. A forma como você percebe o lugar fica diferente.

Neste momento em que escrevo, ouço os helicópteros do Hospital das Clínicas (SP), o bate-estaca firme e forte dos três empreendimentos imobiliários de edifícios multifuncionais da rua, o motor da moto que acaba de passar com o escapamento aberto, os carros na avenida, a gritaria do pessoal da obra. Esta descrição refere-se ao bairro de Pinheiros, região de alto valor especulativo para empreendedores imobiliários: uma cartografia sensorial apresentaria um lugar horrível para se viver atualmente. E é! Todo este ruído ultrapassa 70 decibéis. Para quem não sabe, sons na forma de ruídos acima deste índice afetam a saúde e trazem consequências como estresse crônico, insônia, irritabilidade, doenças cardiovasculares e déficit cognitivo em crianças. Estudos e relatórios provenientes de pesquisas na área da saúde existem e comprovam que, para além do incômodo, barulhos contínuos geram consequências que levam à morte. Não é “achismo”. É ciência. As cidades mais barulhentas do mundo e suas consequências encontram-se no The Worlwide Hearing Index (2021), um relatório construído a partir de dados emitidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e organizados pela Sintef, uma organização norueguesa independente que se dedica à pesquisa científica e ao desenvolvimento de inovação tecnológica multidisciplinar.

Os limites estabelecidos pela OMS a partir dos quais os sons se tornam ruídos nocivos — ou seja, 65 decibéis durante o dia e 55 à noite — são sistematicamente violados nas cidades brasileiras. O ruído entendido como barulho persistente e contínuo descamba em agressão ao organismo, desencadeando reações neurais e fisiológicas. Um amigo médico explicou que, como toda agressão, ocorre um aumento da pressão arterial, subindo a frequência cardíaca para que os músculos do corpo recebam mais oxigênio, ou seja, para que o corpo alcance a energia necessária para enfrentar a situação entendida como agressão (sonora). Como o ruído não demanda reação física, toda glicose gerada pela situação não é eliminada em ação. Fica no corpo, armazenada, levando a problemas cardíacos, hipertensão, diabetes, surdez, cansaço, baixo rendimento intelectual e cognitivo (no caso das crianças) no caso de exposição contínua. Barulho, sons altos persistentes, não podem ser considerados como fatos corriqueiros, normais, inerentes ao ambiente urbano. 

A Norma Brasileira (NBR) 10151:2019, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), estabelece que a emissão de ruídos em zonas residenciais não deve ultrapassar os 55 decibéis no período diurno (entre 7h e 20h) e 50 decibéis no período noturno (entre 20h e 7h). As diretrizes de caráter técnico padronizam os níveis sonoros para a regulamentação do parcelamento e uso do solo, cabendo à prefeitura buscar as regras compatíveis com as áreas habitadas e com as diferentes atividades do dia a dia urbano. Como o ruído é um elemento não percebido pelo olhar — é de certa forma invisível —, temos a impressão de que ele não nos afeta. Da mesma maneira pensam os vereadores e prefeitos eleitos por nós. Em sua conveniente e restrita visão, consideram desnecessário legislar sobre aquilo que não se vê, “normalizando” a barulheira, fruto da má gestão urbana.

Na contramão da elaboração de programas e políticas públicas que buscam melhorar a qualidade da saúde da população em países cujos parlamentares e prefeitos buscam a civilidade na interação entre interesses dos cidadãos e empresas relacionadas à indústria do entretenimento, os vereadores e prefeito da capital paulista vêm se empenhando em aprovar o texto substitutivo da PL 239/2018 com o objetivo de ampliar os decibéis (leia-se ruídos) em bairros residenciais e mistos, de estruturas que se encontram implantadas no meio das vizinhanças. Os diligentes vereadores justificam a “releitura” das diretrizes apresentadas pela NBR como necessárias para a “geração de novos empregos” em detrimento dos “danos e consequências à saúde” da população local. Como se vê, cartografias sensoriais, mapas de ruídos urbanos e sensores capazes de mensurar as características sonoras das ruas, praças, parques e demais logradouros públicos urbanos, realizadas sistematicamente por instrumentos já implantados em várias cidades civilizadas mundo afora, não passam de obras de ficção nas cabeças daqueles que, depois de eleitos, esqueceram da saúde e da qualidade de vida de quem os elegeu. Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Instagram @helenadegreas.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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