Destruir estátuas e depredar espaços públicos apaga a história e não soluciona questões de exclusão

Mais importante do que a demolição de um monumento é preparar crianças, jovens e adultos para a discussão crítica, mantendo os símbolos onde estão ou transferindo-os para museus ou instituições culturais

  • Por Helena Degreas
  • 27/07/2021 10h30 - Atualizado em 27/07/2021 11h03
Reprodução/Twitter Fumaça preta toma conta da estátua de Borba Gato Em protesto no último sábado, 24, manifestantes colocaram fogo em estátua do bandeirante Borba Gato na zona sul de São Paulo

Reflexo do mal-estar e descontentamento de segmentos sociais que historicamente não foram incluídos no processo de produção econômica, cultural e social das cidades brasileiras e que, consequentemente, não se encontram representados nas homenagens expostas em monumentos, nomes de ruas, praças, pontes, prédios e equipamentos públicos, não justifica atos de depredação, vandalismo e demais formas de agressão e ódio direcionadas aos elementos que compõem os espaços públicos urbanos. Para o bem e para o mal, esses objetos fazem parte do patrimônio público e pertencem a todos os cidadãos. Há assuntos mais importantes a tratar, como as conquistas nas Olimpíadas que nos emocionam e mostram que, apesar do atual inquilino que ainda ocupa o Palácio do Planalto, este país resiste e nos faz sentir melhor. Há também as manifestações que sistematicamente vem ocupando as cidades brasileiras de forma vigorosa reafirmando que nossas instituições são fortes e democráticas, e a favor do impeachment do presidente da República por sua política criminosa na área da saúde que matou cerca de 550 mil cidadãos e enlutou outras tantas famílias, parentes e amigos.

Ao ver estampadas as imagens e sorrisos vitoriosos dos atletas em jornais, revistas e redes sociais empunhados de medalhas, sinto vergonha ao ver o atual inquilino do Palácio do Planalto apresentar-se empunhando imaginárias “arminhas” nas mãos como se fosse algum personagem de filme de guerra retrô e de mau gosto. Nem sei o que pensar mais. Vivemos num país que, a despeito de todas as injustiças sociais historicamente construídas, tem ferramentas e instrumentos institucionais e legais para realizar as mudanças necessárias para reduzir e eliminar as nossas mazelas. É tarefa árdua, lenta, mas não impossível. Representações sociais em órgãos e conselhos consultivos ou deliberativos estão previstos desde a lei que promulgou o Estatuto das Cidades; além deles, o voto consciente e representativo de grupos minoritários e excluídos associado às ações (mesmo que lentas) do Ministério Público, são armas eficazes e capazes de construir cidades mais justas. Destruir, vandalizar, depredar e chamar o incêndio da estátua de Borba Gato de “ato político”, não é possível.

Na coluna anterior, comentei brevemente sobre o empoderamento de mulheres e meninas e o dever de mudarmos o “esquecimento e a invisibilidade” de nossos feitos e ações por meio de homenagens em áreas públicas e centrais, com o objetivo de resgatar distorções históricas que afetam profundamente nossa formação cultural e a visão predominantemente masculina da vida pública. Citei alguns exemplos marcantes: a prefeitura de Bilbao, na Espanha, realizou um conjunto de ações visando alterar a situação e, por meio de consulta pública a moradores de uma nova área urbana em construção, solicitou que escolhessem nomes de mulheres importantes para homenagear passeios, ruas e demais áreas e prédios públicos. Políticas públicas foram criadas a partir da pressão de diversas organizações sociais sobre vereadores e prefeitos para que a mudança ocorresse. O que aconteceu na Espanha vem ocorrendo em vários países e, mais cedo ou mais tarde, vossas excelências terão que nos ouvir. Não houve depredação ou atos de vandalismo para com o patrimônio público para que a mudança fosse possível. Da mesma forma que alguns leitores discordaram veemente da pauta da semana dedicada ao empoderamento de meninas, outros apoiaram. O mesmo ocorreu com os residentes e os comerciantes. Os nomes mais votados foram escolhidos pela maioria dos eleitores. As pessoas se veem representadas agora.

O jornalista Laurentino Gomes comentou em seu Twitter (cuja leitura recomendo fortemente, pois é uma aula de história) que o incêndio de um dos monumentos mais tradicionais e controversos da cidade de São Paulo, o Borba Gato, juntamente com o Monumento às Bandeiras, que foi pichado inúmeras vezes, simbolizam a exploração colonial brasileira. Inspirados pela onda de protestos antirracistas geradas pela morte de George Floyd, grupos brasileiros pedem a derrubada de símbolos escravagistas. Petições on-line enviadas à Secretaria de Cultura cobram a retirada da estátua. Ao final da postagem, o jornalista comenta que a estátua de Borba Gato, com seus dez metros de altura e vinte toneladas de peso no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, “é feia que dói”. Concordo plenamente com o comentário. Não conheci ninguém que tenha expressado opinião favorável à estética peculiar da obra. Mas ressalta que ainda assim deve permanecer por lá para que as pessoas saibam quem foi o personagem e como foi parar naquele lugar.

Para o arquiteto e pesquisador em patrimônio cultural Antônio Soukef Júnior apagar a história para reescrevê-la não parece uma boa estratégia. Incendiar monumentos ou destruir símbolos impede a reflexão sobre os atos do passado e não colabora para a solução do problema. Mais importante do que a demolição de um monumento é preparar crianças, jovens e adultos para a discussão crítica, mantendo os símbolos onde estão ou transferindo-os para museus ou instituições culturais. É a partir da descrição dos fatos contextualizados no tempo histórico e social que a crítica deve ser feita, jogando luz sobre os motivos que os geraram e que, embora iniciados em séculos passados, ainda se perpetuam por meio de políticas públicas. Como entender o presente sem mencionar o passado? Simplesmente abolir o que foi feito porque não condiz com nossas crenças e valores atuais?

Há algumas semanas escrevi uma coluna sobre políticas públicas federais que incentivam a ocupação dos aldeamentos indígenas e destruição da cultura quilombola dizimando, ainda hoje, povos ainda representados nas três esferas de poder. Mesmo tecnicamente comprovado que as ocupações contribuem sobremaneira para a preservação ambiental local e do planeta, gerando inclusive recursos econômicos aos povos envolvidos, sua representação política frente à criação de leis, normas, fiscalizações não se faz presente nas ações governamentais. O atual governo federal continua maltratando sistematicamente cidadãos brasileiros por meio de políticas públicas erráticas (e criminosas) que destroem a cultura, a educação, o ambiente e que, há cerca de 500 dias, matam cerca de 550 mil brasileiros por ausência de vacinas.

Alguns colegas que comentaram sobre o assunto entendem que o acesso à construção simbólica da cidade é restrito a pouquíssimos grupos e que, reduzir a questão do ataque em um monumento a um ato de vandalismo é, também, reduzir um assunto complexo como o direito à cidade, menosprezando o sentido político do ato. Discordo, pois o que mais chama a atenção deste caso é o incêndio de pneus e o conjunto de pessoas que, agindo como black blocs, incendiaram o tal monstrengo e fugiram. Querem protestar? Comecem assumindo seus atos. O jornalista Reinaldo Azevedo utilizou seu Twitter para destacar que, enquanto o Brasil inteiro manifesta-se pacificamente pelo impeachment de Bolsonaro, meia dúzia de tolos ateia fogo à estátua de Borba Gato e essa vira a imagem do dia para a felicidade dos bolsonaristas. Seu texto exprime claramente a situação.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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