É preciso que governos se antecipem às mortes anunciadas para o próximo verão

Precisamos nos unir contra a apatia e o descaso das autoridades públicas na implementação de políticas de planejamento para evitar o comprometimento da saúde humana decorrente das ondas de calor

  • Por Helena Degreas
  • 26/07/2022 10h00 - Atualizado em 26/07/2022 17h25
Agência Brasil/Reprodução Pessoas utilizam Vale do Anhangabaú para lazer Vale do Anhangabaú é uma região do centro da cidade de São Paulo

Inverno, sol a pino, fui visitar alguns colegas cujos escritórios permanecem na região central da cidade de São Paulo. Desci na estação de metrô São Bento e fui direto à padaria do mosteiro para comprar a geleia de damascos (que amo de paixão) e bolinho Santa Escolástica, muito saboroso. Com as guloseimas em mãos e antes do encontro marcado, passei para dar uma olhadela no novo Vale do Anhangabaú.

Um sentimento de indignação misturado com tristeza, apoderou-se de mim. Na língua tupi-guarani, Anhangabaú significa rio ou água do mau espírito. Acho pouco provável que os povos tupi-guarani considerassem à época que, um dos elementos da natureza feito por “Nhanderú”, criador da Terra, mãe de todos, a quem os povos devem sua existência e de toda a natureza nela contida, como algo ruim. É muito provável que a expressão tenha sido cunhada após algum malfeito dos “juruá” contra os povos indígenas e a mãe Terra, destruindo os laços de integração e equilíbrio entre a natureza e o homem.

O novo espaço entregue à população sofre de uma aridez desoladora. As antigas árvores foram substituídas por mudas menores. As exposições desproporcionais da superfície impermeabilizada à radiação solar ampliam a sensação térmica e são responsáveis pelo aquecimento do solo. Questionada sobre a obra, a Prefeitura informa que, quando todas as árvores estiverem plantadas e crescidas, o sombreamento será “sentido” pelos cidadãos. Basta, portanto, segurar a ansiedade e aguardar pelas próximas décadas. Certamente, os cidadãos que estiverem atravessando o vale em 2050, terão o prazer de sentir o frescor das sombras das árvores plantadas em 2021 e 2022. Aguardemos, pois.

Nos últimos anos, ambientes escolares, centros de pesquisa, instituições universitárias, empresas, organizações não governamentais, coletivos diversos e pessoas como eu e você, leitor, estamos realizando ações em prol da melhoria climática mudando nossos hábitos de consumo e comportamentos, pesquisando tecnologias para captar e reduzir a emissão dos gases de efeito estufa, educando por meio de campanhas promovidas por grupos ambientalistas voltadas a comunidades sobre os benefícios do plantio e cuidado com a manutenção das árvores  e, por meio dos veículos de comunicação, apontando sistematicamente soluções e alternativas viáveis para a descarbonização do planeta objetivando reduzir e evitar as consequências dos extremos climáticos sobre a saúde de todos.

À exemplo de algumas capitais e cidades espalhadas Brasil afora, técnicos públicos em consonância com as aspirações da sociedade civil e empresas, elaboraram nos últimos anos, excelentes planos que contextualizam os problemas ambientais de suas cidades alinhando-os à dinâmica global de atuação técnica e política sobre eventos extremos em populações urbanas, apresentando diretrizes e metas concretas e realistas para a adaptação e resiliência urbana aos efeitos resultantes dos extremos climáticos. A ciência trata do assunto há anos e, planos de mobilidade, de ação climática, de proteção de áreas verdes, espaços livres dentre outros, existem. Falta acelerar a implantação. Por quê?

Apesar de toda esta movimentação, a imensa maioria de políticos eleitos por nós, cidadãos, ainda não se encontra devidamente sensibilizada para a mortalidade que vem ocorrendo em escala global, procrastinando atuações concretas tanto na formulação de programas de implantação imediata, como na destinação de verbas orçamentárias para a implementação do que já está proposto a tempos em políticas públicas por meio de planos urbanos.

Me pergunto se no próximo verão, quando a temperatura subir e a sensação térmica alcançar os 50°C, o que dirão as “autoridades” com as mortes já anunciadas? Que ninguém pensou em tal situação? Fatalidade? Coisa do destino? Vontade de Deus? Chamo Santa Bárbara para resolver com seus raios, trovões e tempestades? Continuarão agindo como os juruá que tomam tudo o que não criaram e vendem tudo o que não lhes pertence? O planejamento das ações para conter o calor que se avizinha, precisam ser tratadas prontamente para combater as consequências que impactarão a saúde da população já em 2023.

Relatório de 2022 do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, mais conhecido como IPCC, aponta que graças aos danos causados pelos gases de efeito estufa na atmosfera do planeta, a estação de verão em países tropicais e subtropicais apresentará temperaturas mais elevadas e persistentes superando os 45°C. Nesta situação, cientistas afirmam que a possibilidade de ultrapassar os limites fisiológicos relacionados à tolerância ao calor nos próximos anos pode afetará a termorregulação dos organismo. Significa que se do lado de fora está muito quente, meu organismo tem por missão equilibrar a minha temperatura, dissipando ou retendo calor para o meu corpo. Meu organismo precisa manter a temperatura média corpórea variando entre 36,5ºC e 37ºC para que eu permaneça viva e bem.

Se esse delicado equilíbrio de temperatura corporal não ocorrer, os órgãos internos poderão ser atingidos e, dependendo do nível de gravidade, levar ao óbito. Crianças, pessoas com mais anos de vida ou com comorbidades, serão as mais afetadas. O Brasil ainda apresenta altas taxas de mortes em consequência da Covid-19, entramos na fase de emergência global em função do alto grau de transmissão da “varíola dos macacos” e estamos enfrentando ondas de calor já descritas pelos relatórios do IPCC. Os dados apresentados para a realidade de países tropicais e subtropicais como o Brasil é alarmante e encontram-se disponíveis na internet para consultas em vários idiomas. É preciso que governos se antecipem às mortes anunciadas e utilizem o saber científico para proteger a população.

Os efeitos à saúde relacionam-se às características e tempo da exposição, apresentando níveis distintos de intensidade e podendo levar a alterações de humor, comportamento, distúrbios cognitivos, inflamações pulmonares, doenças cardiorrespiratórias, alterações da pressão arterial além de acarretar efeitos adversos que, com o passar do tempo, transformam-se em doenças crônicas, que podem levar à morte. Esta situação já causou a morte de mais de mil cidadãos no continente europeu apenas em 2022.

A exposição ao calor extremo afetará a todas as populações e, em especial, aquelas mais pobres e vulneráveis socialmente. Condicionamento de ar, mudanças construtivas que permitam ventilação adequada em habitações, espaços públicos arborizados e com qualidade espacial são raramente encontrados em regiões que cresceram à margem das regulações urbanas. Ventiladores certamente não estão na lista de prioridades de consumo dos 60 milhões de brasileiros que, de acordo com o relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), encontram-se em situação de insegurança alimentar ou ainda, passando fome.

É previsível que os impactos decorrentes do calor extremos serão mais sentidos levando ao comprometimento da produtividade e da saúde. Com a palavra, vereadores e prefeitos: como vocês estão planejamento evitar o sofrimento e a morte da população dos efeitos do calor extremo do verão de 2023?

Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Instagram: @helenadegreas.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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