Histórias que não foram registradas nos livros nem noticiadas pela imprensa: Ouvi do Ipiranga…

Museu do Ipiranga propiciou momentos de pura felicidade e foi palco para travessuras intensas

  • Por Helena Degreas
  • 06/09/2022 10h00 - Atualizado em 06/09/2022 11h11
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Arquivo Pessoal/Helena Degreas Foto com paisagem do Museu do Ipiranga Após nove anos fechado, Museu do Ipiranga reabre as portas em SP no dia 7 de setembro

Histórias de vidas que não foram registradas nos livros, não foram noticiadas pela imprensa, mas que são parte da minha vida e que me foram contadas ao longo do tempo que trabalhei por lá. Tentando organizar minha biblioteca, encontrei vários apontamentos e anotações em uma caixa de papelão. Lendo os textos escritos à mão, vi o amor dos moradores pelo bairro e, em especial pelos jardins, fontes e pelo Museu do Ipiranga, local este que propiciou a todos aqueles que ouvi, momentos de pura felicidade e, também, por que não dizer, foi palco para travessuras intensas. Quero compartilhar com vocês, leitores, o encantamento que senti ao lembrar dos relatos sobre as vivências daqueles que foram crianças e jovens, entre o final dos anos 1930 e meados de 1950 no bairro do Ipiranga. Tomei a liberdade de preservar seus nomes. Em suas lembranças, as brincadeiras ocorriam nas ruas, nos matagais e nos inúmeros campinhos de futebol que se espalhavam por terras ainda não construídas. Descalços, pé no chão e com seus calções, a bola era democrática e a todos unia, fossem filhos de espanhóis, italianos, sírios, portugueses, libaneses e brasileiros. Certa tarde de domingo, um dos campos considerados “oficiais”, graças ao mato aparado e a existência de traves, o diretor do time da escola conhecido como Nine, recebeu a ilustre visita de dois “engravatados” que, discretíssimos, assistiram à partida sem emitir um “pio”. Suas vestimentas, causaram um misto de estranhamento e deslumbramento a todos. Só pessoas de nível social alto, com dinheiro, usavam terno, gravata e sapatos à época na região. No Ipiranga dos pais, tios e avós, o macacão da fábrica e a botina até o meio do tornozelo, eram a vestimenta, por assim dizer, comum a todos. Terminado o segundo tempo e antes mesmo das discussões que se estendiam tardes afora entre os meninos, o diretor foi chamado pelos dois ilustres senhores e avisado de que ele teria que encontrar um novo campo para jogar, pois no ano seguinte, seriam construídas as instalações da fábrica da Ford no Brasil, fato este que ocorreu por volta dos anos 1950. Meninos e diretor, não viram problema algum vez que o bairro tinha terrenos de sobra para os jogos de todos os times locais.

Com pouquíssimas ruas calçadas e nenhum recurso no bolso, crianças construíam seus carrinhos de rolimã com sobras de madeira, a partir do empréstimo de serrotes de algum parente marceneiro. Os rolamentos, descarte do maquinário das fábricas, eram comprados em ferro-velho a partir de trocados conseguidos por alguns serviços realizados pela molecada. Numa ocasião, um dos garotos descreveu que os oficiais do Batalhão do Corpo de Bombeiros do Ipiranga, ofereceram-lhe alguns trocados para engraxar as botas, limpar a crista dos capacetes, os cinturões e deixar tudo em ordem para o uso. Com o dinheirinho, comprou os rolamentos e tal, e ainda sobrou algum troco para o sorvete após a matinê. Disputas acirradíssimas no meio da rua ocorriam entre eles, com direito a joelhos e cotovelos ralados, quando não alguns galos na cabeça. Os jardins do Museu do Ipiranga merecem comentários à parte. E muitos. Seus guardas vez e outra, acolhiam os pedidos de mães que, na falta de pessoas próximas para deixar as crianças em situações emergenciais, recorriam aos guardas do parque que, com zelo, cuidavam das crianças e de suas brincadeiras pelas manhãs e tardes ensolaradas, enquanto realizavam a vigilância. Bola não podia. Brincar de pegador, também não. Soltar pipa e balões nem pensar. Pisar na grama era tido como crime passível de punição pelas crianças. Nenhum guarda nunca havia solicitado isto. Mas eles nasciam sabendo que não podia. Carrinhos de rolimã tampouco. Os guardas que durante o dia zelavam pelo bem-estar dos pequenos, nos demais períodos eram enérgicos soando seu apito. Mas, os jogos de peteca que ocorriam entre moças e moças aos finais de semana eram permitidos, estendendo-se até o início da noite quando juntos, iam aos cinemas assistir os lançamentos dos filmes. Estes, aliás, eram inúmeros no bairro, cerca de 13 ou 14… imensos! chegavam a ter salas com centenas de assentos, destacando-se o cine Palácio Ipiranga, o cine Paroquial, o cine Sacomã, o cine Dom Pedro que ficava na Rua Silva Bueno.

As fontes francesas construídas no museu foram citadas de forma, no mínimo, inusitada. Aos finais de semana, famílias inteiras passavam o dia desfrutando do prazer do sol e da convivência em trajes de passeio, diferentes daqueles usados no dia a dia dos comércios e das fábricas. Às noites, a iluminação colorida das águas, são lembranças que todos, sem exceção, citaram como lindas, maravilhosas e inesquecíveis. Rosas roubadas dos canteiros floridos, eram provas de afeto entre jovens enamorados. “São Paulo inteira vinha aqui”. E os guardas, apitando, apitando… haja fôlego. Contam os meninos, hoje crescidos, em meio a gargalhadas incontroláveis durante as gravações, que à época eles nadavam nas fontes dos jardins franceses que, menores e redondas, existiam nas duas laterais: uma na rua dos Patriotas, próximo à Avenida Nazaré e a outra onde hoje está o SESC, encostado na parede. Foram demolidas ninguém soube dizer a razão, para os eventos do sesquicentenário da Independência. Embora respeitassem profundamente os guardas do museu, os garotos ficavam escondidos atrás das árvores maiores do parque e, já com o calçãozinho na mão, porque à época não tinha isso de shorts, bermuda, eles aguardavam a vigilância dirigir-se lá para cima da escadaria defronte do prédio para, posteriormente, “TCHIBUM”, saltar para dentro da fonte sem pestanejar. Quando o pobre percebia, eles corriam em carreira descendo para o lado onde está o Hospital Leão XIII. Quando usavam a outra fonte, corriam para o lado da Rua Bom Pastor ouvindo o som forte do apito dos guardas. Estrepolias, enfim. E o apito, soando forte…

A Companhia Brasileira de Linhas para Coser conhecida mais tarde como Linhas Corrente juntamente com a Fábrica de Fiação e Tecelagem Lutfalla criaram uma situação geográfica incomum. Juntas, elas empregavam cerca de 5 mil moças que, com o som do apito pontualíssimo à vapor da fábrica de linhas Corrente às 17h e pouco mais tarde, da tecelagem Lutfalla às 17h30, eram liberadas do turno, todas elas, num mesmo ponto. Em grupos mistos ou por tipo de migração, jovem rapazes dirigiam-se até lá em busca da “eleita”. O fato é que eram tantas as possibilidades de encontro que, de acordo com os relatos, não se conseguia “tomar a ação”, seja ela qual fosse. Ficavam confusos. Quanto aos apitos, mais pontuais do que os sinos das torres das Igrejas, serviam de referência para o acerto dos ponteiros dos relógios das casas. O início da noite aos finais de semana era dedicado aos flertes. Descendo a Rua Bom Pastor, entre a rua Sorocabanos, atravessando a Rua Leais Paulistanos, chegando na Rua Tabor e virando à esquerda até a avenida Dom Pedro, aconteciam, os chamados “footings” ou Vai e Vem. Levado muito à sério, o footing iniciava-se por volta das sete da noite pelos rapazes que, ao longo da semana, empenhavam-se na construção de estratégias de aproximação que se mostrassem eficazes. Tentativa e erro, a persistência, levava vez e outra, ao acerto. Os melhores lugares geravam por vezes, alguns sopapos entre os mais afoitos. Nada sério. De um lado, encostados nas paredes das casas e comércios e, do outro lado, sobre a guia, rapazes enfileirados e com a melhor roupa de domingo, “tiravam linha”, em busca do flerte inocente. De braços dados, as jovens subiam e desciam as calçadas, por entre os rapazes e, de rabo de olho, “tiravam linha” em resposta. Olhar correspondido, o galanteio era iniciado. Se em duas estivessem, a aproximação era mais tranquila. Se estivessem em três e a escolhida fosse a jovem do meio, a estratégia deveria ser ousada pois, segurando vela, as amigas das pontas, observavam atentamente o resultado da situação tirando partido e intrometendo-se na conversa. Se a lábia resultasse em simpatia, se as “tiradas de linha” fossem correspondidas, a próxima ação era o convite para a matinê seguido de sorvete, flertes que tidos como namoricos, eventualmente, levavam ao conhecimento mútuo, gerando o afeto e posterior casamento.

Muitos são os relatos e pouco o espaço desta coluna que alongou-se por demais. Parte destas histórias de vida que formaram o bairro do Ipiranga encontram-se, se não me falha a memória, guardadas em fitas VHS no acervo do Museu José Vicente de Azevedo local que, juntamente com o Museu Paulista, contam inúmeras histórias em suas cartas, fotos, postais, objetos, indumentária, louças e que fizeram a alegria das crianças e dos jovens cujas recordações de época, destaquei no texto. Misturadas às minhas, trazem informações do cotidiano daqueles que fizeram o bairro e a cidade de São Paulo. Em nome dos meus entes queridos que, juntamente com alguns dos imigrantes e brasileiros entrevistados tem sua energia espalhada pelo universo, meu mais profundo respeito e admiração. A todos vocês, dedico a coluna cujos relatos, não serão encontrados nos livros de história. Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou Instagram: @helenadegreas.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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