Praças e hortas nas alturas? Como as cidades estão criando novos usos para seus antigos telhados

Ajardinamento de tetos e lajes traz mudanças sociais e ambientais profundas, e vem na esteira das discussões sobre a agenda urbana internacional

  • Por Helena Degreas
  • 20/04/2021 10h00
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Fábio Motta/Estadão Conteúdo - 08/07/2004 Imagem aérea do jardim projetado por Roberto Burle Marx no prédio do Palácio Gustavo Capanema Vista do prédio do Palácio Gustavo Capanema, antiga sede do Ministério da Educação (MEC), no centro do Rio de Janeiro

E se para além da arborização viária, praças, parques, rotatórias e canteiros ajardinados, os prédios públicos e particulares tivessem seus telhados pensados como espaços destinados a recreação da população e fossem como jardins suspensos? E se esses telhados, além de oferecer serviços como hortas urbanas, piscinas, quadras poliesportivas, apiários e miniflorestas urbanas, estivessem localizados em bairros e comunidades carentes de áreas para a socialização pública? Nos últimos anos, uma série de matérias relacionadas ao ajardinamento de coberturas de edifícios, bem como de varandas, vem sendo nostalgicamente associadas a um “retorno à natureza”, responsável por trazer benefícios à qualidade de vida e conforto aos moradores. É verdade, mas o ajardinamento de tetos e lajes traz mudanças sociais e ambientais bem mais profundas, e vem na esteira das discussões que permeiam a agenda urbana internacional e que envolvem questões e soluções técnicas sobre sustentabilidade urbana.

Vistos de forma mais ampla, os tetos verdes, coberturas vivas e telhados verdes são parte das soluções arquitetônicas e urbanísticas que promovem a estabilidade climática e a conservação da biodiversidade. São também responsáveis pela melhoria da economia local e provisão de novas camadas de uso social aos topos de edifícios comerciais e de serviços que abrigam, parcialmente, equipamentos e tubulações correspondentes aos principais sistemas operacionais da edificação além de telhados. Ou seja: respeitadas as especificações técnicas e de construção, é possível acomodar usos multifuncionais por meio de retrofit, ou ainda, melhoria, modernização e atualização de instalações dos edifícios existentes, contemplando novas ocupações para superfícies planas que servem apenas como cobertura.

Pode parecer novidade, mas o ajardinamento dos telhados é prática corrente há séculos em vilas e cidades do Mediterrâneo, Ásia, Europa e nas Américas. Exemplos não faltam. Coberturas de turfa na Islândia, os lendários Jardins Suspensos da Babilônia ou nas ilhas banhadas pelo mar Egeu, ainda é comum encontrar moradias em que o telhado de um serve como varanda da outra. As formas resultam das construções encravadas nas encostas íngremes e sobrepostas umas às outras como forma de proteção dessa talassocracia “bélica”. É um uso social impregnado na cultura local. Lembro-me de lavar as roupas à mão na quitinete da minha avó em Atenas e estendê-las no varal que ficava na cobertura do prédio de poucos pavimentos. Apesar do sufoco de subir quatro andares carregada com cestos de roupa molhada (situação essa que ela “tirava de letra”), era um prazer imenso ver a cidade do topo, mesmo estranhando ver as roupas dos vizinhos penduradas junto às minhas… A mim, vez e outra juntavam-se crianças menores que corriam de lá para cá derrubando roupas no chão. Acostumei-me aos gritos das mães, das crianças e à exposição de minha “intimidade”. É um uso social impregnado na cultura local.

A ocupação das coberturas planas ou ainda dos tetos das edificações como espaços adequados ao uso humano sempre esteve condicionada aos fatores de localização geográfica que definem as condições de temperatura, a incidência solar, os ventos, as temperaturas e as chuvas. Suas formas, tipos e composições espaciais configuravam numa arquitetura popular, sem arquiteto, que se construiu e se compôs a partir das necessidades sociais, dos materiais e técnicas locais bem como da cultura de cada povo. Dito de outra forma, o plantio e o uso tinham a função de proteger as pessoas das ações climáticas e atender a algumas funções sociais. Nas primeiras décadas do século XX, iniciou-se um processo de adensamento e espraiamento das cidades. Com o desenvolvimento de novas técnicas construtivas como o concreto armado e, posteriormente, a incorporação dos elevadores que viabilizaram edifícios cada vez mais altos, as estruturas como pilar e viga associadas a paredes de tijolos e lajes planas (que nada mais são do que os pisos dos edifícios) marcaram o processo de construção civil nas cidades brasileiras.

Se por um lado iniciou-se um processo de adensamento vertical em algumas regiões urbanas, por outro lado nosso clima tropical marcado por dias quentes, ensolarados, e intercalados por dias chuvosos, atrasou a incorporação dos telhados-jardim preconizados pelo arquiteto Le Corbusier (ícone do movimento moderno arquitetônico) em suas coberturas. No Brasil, a utilização de lajes planas sobre as coberturas de edifícios precisou aguardar pelo aperfeiçoamento dos processos de impermeabilização. Na ausência de soluções adequadas aos vazamentos e às questões térmicas internas, as coberturas dos prédios modernistas (entre os anos de 1930 e 1940) foram sendo protegidas com a construção de telhados tradicionais às casas coloniais brasileiras: estrutura de madeira, telhas de cerâmica (francesa, paulistinha, entre outras) além das conhecidas telhas onduladas cimentícias.

Na cidade do Rio de Janeiro, o Palácio Gustavo Capanema, também conhecido como o antigo Ministério da Educação e Cultura (MEC), foi concebido por Le Corbusier e pela equipe formada por Oscar Niemeyer, Lúcio Costa, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Machado Moreira, Carlos Leão e Ernani Vasconcelos e construído entre os anos de 1937 e 1943. Sob a marquise, Roberto Burle Marx projetou um enorme terraço-jardim em consonância com os preceitos da “nova arquitetura” modernista. Continuou projetando seus terraços-jardim em inúmeros outros edifícios, como no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro ou nos jardins do Banco Safra em São Paulo. Atualmente, os telhados verdes foram incorporados aos Planos Ambientais de diversas cidades no mundo e são parte integrante da infraestrutura verde urbana. A partir deles, espaços abertos urbanos, além de áreas naturais diversas, trabalham como uma espécie de rede interconectada que, pela adoção de tecnologias que permitem o controle ambiental, a regulação climática, a geração de renda pela economia criativa e os usos recreacionais, podem trazer benefícios à população e às cidades.

Exemplos não faltam. As prefeituras de Barcelona (Guia de Terrats Vius i cobertes verdes) e Londres (Living Roofs and Walls) criaram guias e incentivos públicos que colaboram no desenvolvimento destes novos espaços urbanos, com o objetivo de contribuir para o alcance de indicadores quantitativos assumidos no Acordo de Paris. Nos últimos 10 anos, o projeto de ajardinamento das lajes de edifícios na cidade de Londres somou uma área de 1,5 milhões de m² de coberturas; mais ambiciosa, Barcelona apresenta um plano que pretende ajardinar a maior parte dos mais de 60% dos tetos dos edifícios existentes na cidade, ocupando-os com coberturas com espaços cultiváveis de agricultura urbana como numa agripólis. Na cidade de Copenhague, na Dinamarca, o uso do teto das edificações como telhados ajardinados acessíveis é obrigatório em novas edificações desde o ano de 2010. Para além dos terraços-jardim e tetos verdes, o conceito é amplo e pretende disseminar o uso das coberturas e lajes planas de edifícios residenciais e comerciais para fins multifuncionais. Estes novos tipos de espaços livres públicos urbanos encontram-se inseridos numa dinâmica ambiental, social e econômica vinculada às cidades, aos usos urbanos e à rede de mobilidade a pé, transformando-se em espaços habitáveis prontos para receber a população.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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