Doria trata o complexo do Ibirapuera como grande salão de negócios em vez de entregá-lo ao paulistano

Governo estadual entende lazer da população apenas como um prejuízo contábil, mas a cidade é muito mais do que shoppings, apartamentos short/long stay e coworkings

  • Por Helena Degreas
  • 12/01/2021 09h00 - Atualizado em 12/01/2021 14h47
Divulgação/Secretaria de Esportes Edital de concessão do complexo do Ibirapuera prevê a possibilidade de demolição de todos os equipamentos esportivos do local

O recente edital proposto pelo governador João Doria que prevê a concessão do Conjunto Esportivo Constâncio Vaz Guimarães, conhecido como Complexo Desportivo do Ibirapuera, prevê a construção de uma arena e a possibilidade de demolição de todos os equipamentos esportivos do local. Em dezembro, a juíza Liliane Keyko Hioki, da 2ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo, alegou que o processo licitatório é precipitado e feito sem análise sobre se o projeto apresentado pelo poder público realmente atende ao interesse público. O que se entende por interesse público? Quem é o público interessado? Muitas questões estão envolvidas e algumas delas podem não representar o interesse da população diretamente afetada: os usuários do complexo.

As declarações de Doria e de seu secretário de Esportes, Aildo Ferreira, defendem que não faz sentido gastar dinheiro público para manter uma “estrutura obsoleta, defasada, que atende muito mal os atletas de São Paulo”. O governador acrescenta que todo o conjunto gera prejuízo aos cofres públicos no montante de R$ 10 milhões. Dito de outra forma, entende-se que o complexo pode ser demolido sem prejuízo algum para a cidade e seus habitantes. Discordo e destaco duas das questões que considero fundamentais: o processo de tombamento de um complexo desportivo como necessário à preservação de um marco da cidade e a outra, que trata do conceito de interesse público.

 

Apesar do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) ter rejeitado o pedido de tombamento do Complexo Desportivo Ibirapuera, é importante ressaltar que a atual composição de seus membros foi alterada também pelo atual governador, reduzindo o papel das universidades e da população, por exemplo. A abertura de um processo de tombamento de um bem público permite que o povo reflita e atue diretamente sobre os destinos de um lugar que é utilizado por diferentes grupos sociais desde a década de 1950. A partir da participação popular nas decisões sobre o papel desempenhado por este complexo, seria possível proceder às reformas que atendam às necessidades e expectativas de um espectro social mais amplo, e não restrito a agentes públicos e empresas privadas. Além do mais, o instrumento de tombamento autoriza o concessionário a realizar reformas e remodelações que adequem as edificações, as novas funções e o uso contemporâneo de atletas e da população em geral. Como exemplo, a prefeita de Paris, Anne Hidalgo anunciou nesta semana a transformação do Champs-Élysées em um imenso jardim para uso da população. Ela está preocupada com a vida dos cidadãos em seus espaços públicos. A proposta é resultado de uma ampla consulta realizada junto à população e que representará a vontade dos parisienses. 

Já em São Paulo, a proposta para o novo empreendimento foi realizada por meio de um contrato celebrado entre o governo estadual a Fundação Instituto de Pesquisas (Fipe). Os estudo para a modelagem comercial geraram o Documento Referencial para a concessão de uso do complexo desportivo “Constâncio Vaz Guimarães” e construção de arena multiuso. Ele descreve os novos usos previstos para a viabilização do negócio: arena multiuso (20 mil pessoas, com 45 mil m²), atividades esportivas (clube desportivo pago e áreas externas para uso livre, com 4.880 m²), comércio, serviços e shopping (lojas âncora, megalojas, lojas satélites, conveniências/serviços/entretenimento, quiosques, com 31.780 m²), hotel e residencial com serviços (200 unidades habitacionais e 181 apartamentos short/long stay), edifício multiuso (13 pavimentos de lajes corporativas, salas comerciais e espaços de coworking, totalizando cerca de 10 mil m²) e estacionamento (3.365 vagas). O programa de atividades e usos foi criado por uma empresa sem a participação da população ou outros grupos que atuam pela preservação dos bens culturais. Diferentemente da prefeita Anne Hidalgo, o governador João Dória entende a cidade como um campo fértil para a geração de novos negócios.

O Documento Referencial descreve a contrapartida oferecida aos cidadãos: em troca da construção do novo empreendimento, a população poderá usufruir gratuitamente de quatro quadras abertas. Em troca do direito de construção e exploração comercial durante a vigência da concessão de uma área cobiçada por empresas do ramo imobiliário, o empreendedor oferece ao cidadão uma área inferior a 3.000 m². Não é preciso muito esforço para perceber o quão desproporcional é a relação custo-benefício que envolve a contrapartida apresentada no documento. Entendo que faz-se necessária uma revisão urgente da situação apresentada pelo edital, pois os equipamentos propostos estão aquém daqueles que hoje já são oferecidos pelo atual complexo de forma gratuita aos cidadãos.

Recreação, lazer e espaços de vida pública são temas contemporâneos e estão na pauta das agendas de discussão urbana internacional, pois afetam diretamente a saúde física, mental e qualidade da vida de todas as pessoas. O edital de concessão deixa claro que tanto o governador João Doria quanto o secretário Aildo Ferreira tratam o direito ao tempo livre e à recreação da população como prejuízo contábil porque entendem que as questões relacionadas à cidade precisam ser tratadas como negócios. É um ponto de vista que me permito, como cidadã, discordar. A cidade é mais do que um shopping center, apartamentos short/long stay e coworking. A cidade é feita por pessoas e, como tal, deve ser planejada para sua fruição, sem custos adicionais ou venda de ingressos para acesso às oportunidades de entretenimento e recreação. Prover espaços livres públicos e de qualidade para o lazer de diversos grupos sociais é uma função de governos, não de empresas.

Para o arquiteto e pesquisador em patrimônio cultural Dr. Antônio Soukef Júnior, “o fato de o conjunto apresentar problemas de conservação, por falta de manutenção preventiva, não pode ser o principal argumento para sua destruição, pois sua importância histórica e cultural se sobrepõe à sua perda. Mais do que um complexo desportivo, ele deve ser pensado do ponto de vista urbanístico, já que se trata de um conjunto composto pelo Parque do Ibirapuera, a Assembleia Legislativa e o QG do II Exército”. Acrescenta ainda que “perder um conjunto esportivo que cumpre há décadas uma função social indispensável na formação de esportistas a fim de substituir o espaço por hotéis e demais empreendimentos imobiliários, sob o pretexto da obsolescência da ocupação original, parte de uma premissa simplista, que não leva em conta todos os fatores que deveriam ser pensados”. 

Ao defender a substituição das arquiteturas existentes em função do mau estado de conservação e inadequação aos programas funcionais contemporâneos, o governador e seu secretário erram duplamente: primeiro ao demonstrar um profundo desconhecimento sobre a arquitetura e urbanismo modernistas brasileiros, sua importância na construção da identidade e da memória da cidade. Em segundo lugar, um profundo desrespeito à população por permitir a oferta de contrapartida vil face aos usos atuais e também por desconsiderar todos os abaixo-assinados e cartas públicas de instituições que defendem nosso patrimônio construído e que são contrários às políticas públicas que priorizam a cidade como negócio em detrimento dos seus cidadãos.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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