Tinta no asfalto não basta para impedir que ciclistas sejam atropelados nas cidades

Prefeituras ainda não conseguiram melhorar a acessibilidade e a segurança no deslocamento de pessoas a pé e de bicicleta, embora este público represente mais de 30% dos deslocamentos diários; quantas pessoas precisam morrer para que a infraestrutura seja levada a sério pelos gestores?

  • Por Helena Degreas
  • 19/04/2022 09h44 - Atualizado em 19/04/2022 12h31
Helena Degreas/Arquivo pessoal Bicicleta na Paulista Homenagem à ciclista Juliana Dias, conhecida como Julie, morta na avenida Paulista em 2012

Iniciativa da sociedade civil e de ativistas enlutados com a morte de amigos e familiares, as Ghost Bikes são memoriais àqueles que foram mortos no trânsito das cidades brasileiras enquanto locomoviam-se com suas bicicletas. São bicicletas pintadas de branco, fixadas em postes ou grades e colocadas no local onde o atropelamento aconteceu. Se em 1988 a Constituição Federal mencionava a necessária definição de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento urbano, é apenas em 2001, com o Estatuto das Cidades (Lei Federal 10.257/01), que se dá a regulamentação dos instrumentos institucionais e legais para o planejamento das cidades, dando início ao estabelecimento de regras para a integração dos diferentes modos de transporte e locomoção. 

O que chama a atenção é que, mais de duas décadas depois, as prefeituras ainda não conseguiram melhorar a acessibilidade e a segurança no deslocamento de pessoas a pé e de bicicleta, embora este público represente mais de 30% dos deslocamentos diários. Apesar dos dados, prefeitos priorizam veículos motorizados em suas políticas de mobilidade urbana. O leitor já olhou ao seu redor? O espaço viário destinado aos automóveis particulares é bem maior do que as estreitas calçadas destinadas aos pedestres e as ciclovias destinadas aos cidadãos. Isso quando a solução adotada é a implantação de ciclofaixas compartilhadas sobre calçadas. Afinal, bicicletas e pedestres em calçadas estreitas podem existir, mas perturbar motoristas reduzindo a largura das faixas, não pode, né?

Em pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet), registrou-se o aumento de cerca de 30% de sinistros que exigem atendimento médico envolvendo ciclistas com traumas graves nos primeiros cinco meses de 2021 em relação ao mesmo período de 2020. O afastamento social causado pelos efeitos da pandemia e a grave crise econômica que afetou diretamente a população socialmente vulnerável, ou ainda, mais de 50% da população brasileira que ganha até três salários-mínimos, ampliou o uso da bicicleta como meio de locomoção que passou, segundo a Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares (Abraciclo) de 773 mil bicicletas produzidas em 2018 para 919 mil em 2019 e 665 mil unidades fabricadas em 2020, esperando-se para 2022 um crescimento de 50% em relação ao ano passado.

Embora o crescimento do uso de bicicletas como meio de locomoção e transporte venha ocorrendo, de acordo com dados do IBGE, apenas 14,7% das cidades têm ciclovias e 5,4% bicicletários, número insignificante frente à necessidade que se apresenta. Como isto acontece? Pouco explorado pelos prefeitos é o fato de que o perfil do ciclista atual não se resume à prática de lazer e exercícios daqueles que têm habilidades motoras, físicas e cognitivas de adultos jovens, saudáveis e experientes. Os demais, que como eu já tentaram insistentemente realizar os pequenos trajetos para realizar tarefas domésticas, como ir ao mercado, por exemplo, usando a bicicleta, não conseguem compreender como uma simples pintura sobre o asfalto garante conforto e segurança nos trajetos. “Quando serei atropelada?” é a frase que mais me vem à cabeça quando estou pedalando. Prefeituras têm utilizado predominantemente a tinta sobre o asfalto associada à fixação de tachões de sinalização para a instalação de pistas cicláveis, recurso este que, sozinho, não garante a segurança dos usuários.

Hoje, os novos ciclistas são crianças em idade escolar, idosos com mobilidade reduzida, mais lentos e com baixa acuidade visual, bicicletas compartilhadas por turistas e usuários eventuais para fins diversos, ciclistas de baixa renda que, para trabalhar, substituíram transporte público pelas bicicletas, pessoas com deficiência que utilizam bicicletas adaptáveis, triciclos e handcycles reclinados que precisam de faixas mais largas, pisos perfeitos (são mais próximas ao solo) e locomovem-se em velocidade mais baixa, pessoas movendo mercadorias ou cargas (dos reboques acoplados às bicicletas, entregadores de comida e mesmo carroceiros que não cabem em calçadas) além do público LGBTQIAPN+, pretos, pardos e mulheres que são os que mais sofrem ameaças e sentem-se inseguros nos seus trajetos cotidianos. Se você quiser saber mais, recomendo o Manual da National Association of City Transportation Officials (NACTO) cujo título é Designing for All Ages & Abilities: Bicycle Facilities (2017).

Para ampliar o espectro de potenciais usuários e priorizar a sua segurança, projetos de infraestrutura cicloviária deveriam reduzir as velocidades e o volume de veículos trafegando nos locais por onde as bicicletas circulam. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que as cidades adotem velocidades máximas de 50 km/h em vias expressas e 30 km/h em áreas residenciais e/ou com grande circulação de pessoas em residenciais e nos locais próximos às escolas, centros de saúde, parques, praças e demais equipamentos de uso público. Desde meados de 2021, a prefeitura da cidade de Paris estabeleceu a velocidade limite para automóveis de 30 km/h, tornando as ruas mais seguras, menos poluídas e mais silenciosas para a população. Algumas capitais brasileiras adotaram o limite em alguns bairros residenciais e áreas próximas às escolas, mas, infelizmente, esta é uma exceção.

Outra iniciativa separa os ciclistas das áreas de tráfego intenso e velocidade alta por meio de barreiras longitudinais contínuas como guard rails, muretas e canteiros com o objetivo de evitar a colisão de veículos “errantes” sobre as ciclovias. Embora óbvia, a ideia ainda “não pegou” dentre os técnicos do serviço público e os atuais prefeitos. Quantas pessoas precisam morrer atropeladas para que a infraestrutura seja levada a sério pelos gestores? Decisões resultam de prioridades. Se não há vontade política, nada acontece.

A adoção de sinalização viária que priorize os ciclistas em áreas onde existam cruzamentos semafóricos, adoção de bicicletários públicos em ruas, terminais de transporte e equipamentos públicos e campanhas publicitárias alertando os motoristas sobre a adoção de comportamentos mais seguros na direção são algumas das boas práticas no planejamento de cidades em todo o mundo. Para mudar esta situação, faz-se necessária a mudança de consciência dos agentes públicos em todas as instâncias. Os dados mostram que, apesar dos sinistros seguidos de mortes, as estatísticas ainda não sensibilizaram aqueles que têm o poder de mudar a realidades dos fatos por meio de investimentos na constituição da infraestrutura cicloviária.

Para terminar, gostaria de registrar na coluna da semana minha surpresa e indignação para com o recém-empossado governador Rodrigo Garcia que, em nome de todos os paulistas (não me representou nesta ação), batizou a ciclovia do Rio Pinheiros como “Ciclovia Franco Montoro”. Ressalto que o ex-governador já é homenageado em nome de rua, viaduto, avenida, aeroporto, praça, parque, escola municipal, biblioteca e ponte, pelo que pude apurar em 5 minutos de busca pela plataforma Google. Ou ele, ou seus assessores, esqueceram de fazer a lição de casa: estudar ao menos 5 minutos para entender que a vida e as realizações públicas ocorrem também para fora das paredes do Palácio dos Bandeirantes e das demais esferas institucionais; escrevo isso com o devido respeito e apreço ao finado ex-governador. 

Desconectado dos interesses da população do Estado de São Paulo, o atual governador Rodrigo Garcia perdeu uma excelente oportunidade para solicitar aos ciclistas – os principais interessados, a indicação de personalidades do ativismo cicloviário que podem ser lembrados por seus atos em favor do planejamento urbano direcionado à mobilidade ativa. Apesar da foto oficial apresentá-lo em meio a uma maioria de homens, eu posso indicar duas mulheres. A Jornalista Erika Sallum e a cicloativista Marina Kohler Harkot, a quem dediquei uma das minhas primeiras colunas na JPNews. Não teve a sensibilidade para perceber que, para além do seu grupo próximo, existem cidadãos que representam os interesses da população e lutam por eles. Já ia me esquecendo: praticam a boa política, sem a representação de uma sigla ou partido registrado no TSE.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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