A falta de senso de coletividade é a principal causa do caos no Amazonas

Desde o ano passado, notícias de desvios de recursos para compra de respiradores, ausência de medidas preventivas mais rigorosas, até o ‘fura-fila’ na aplicação das vacinas, nesta semana, denotam a ausência de diretrizes certeiras que poderiam ter salvado vidas

  • Por Paulo Mathias
  • 24/01/2021 08h00 - Atualizado em 24/01/2021 09h51
Sandro Pereira/Estadão Conteúdo Profissionais carregam caixão de uma vítima de Covid-19 Enterro de pessoa morta por Covid-19 no cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus

O caos se instalou na cidade de Manaus. Quer provocado pela falta de consciência de uma parcela de sua elite, quer proveniente do colapso no sistema de saúde local, quer provocado pela ineficiência do poder público, recheado de corrupção, interesses escusos, falta de humanidade e de visão futura. Nesse palco de horrores, quem sofre é a população manauara, de mãos atadas, assistindo a mortes de familiares sem meios para socorrê-los. Desde o ano passado, notícias de desvios de recursos para compra de respiradores, ausência de medidas preventivas mais rigorosas, até o “fura-fila” na aplicação das vacinas, nesta semana, denotam a ausência de diretrizes certeiras e senso de coletividade que poderiam ter salvado muitas vidas. Na semana passada, o sistema de saúde de Manaus entrou em seu segundo colapso desde o início da pandemia, com o crescimento de 20% no número de mortes em relação ao primeiro pico, em maio passado. Há causas que explicam.

Manaus se tornou uma das cidades mais atingidas pelo vírus no mundo todo. Com o SUS em colapso, quase 100% de sua capacidade de atendimento esgotada, mais de 120 mortes diárias em abril, a cidade passou a enterrar seus mortos em valas coletivas. Um país em que o principal suspeito de ser o chefe do esquema é o próprio governador, Wilson Lima, do PSC, remete a uma reflexão do quão doente se encontra o poder público, que demonstra não se importar com vidas humanas.

Em meio a esse cenário, não bastando o caos instalado no setor de saúde pública da cidade, no ano passado, a Polícia Federal iniciou a apuração de um superfaturamento na compra de respiradores no Amazonas, envolvendo empresários e integrantes da cúpula do governo do estado. O esquema envolvia a compra de 28 aparelhos, sem licitação, por uma quantia de R$ 3 milhões. Nessa ação da PF, conhecida como “Operação Sangria”, parte dos bens do governador do Amazonas foram apreendidos pela Justiça e cinco suspeitos foram presos, contudo, soltos em seguida. Além disso, foi decretada a prisão da secretária da Saúde do estado, Simone Papaiz, suspeita de envolvimento em fraude no setor durante a pandemia do coronavírus. Ela foi acusada de desviar verbas federais em razão de contratação da tal empresa de fornecimento de respiradores, de forma subfaturada, chegando a 133% de diferença em relação ao maior preço praticado durante a pandemia.

Porém, esse colapso do sistema de saúde poderia ter sido evitado se medidas mais rigorosas e planejadas fossem aplicadas anteriormente. Jesem Orellana, epidemiologista da Fiocruz Amazônia, apresentou às autoridades da saúde pública da capital amazonense, em setembro passado, dados a respeito da alta de internações e mortes provocadas pela Covid-19. Hoje, janeiro de 2021, os casos diários no Amazonas ultrapassam 5.000, número recorde para o estado, que fica atrás apenas de São Paulo e Minas Gerais. Realidade que poderia ter sido minimizada. Vidas ainda são perdidas por falta de oxigênio e lotação das UTIs. Manaus, que atingiu o limite da capacidade de atendimento, sem leitos, sem oxigênio, passou a depender dos demais estados, que se mobilizaram em campanhas de captação de recursos e doações de cilindros para abastecimento de hospitais locais.

Complementando a sucessão de fatos que maculam a imagem de um estado, centro das atenções do mundo por diferentes razões, outro fato foi manchete dos jornais nesta semana. Duas médicas, recém-formadas, filhas de empresário, furaram a fila de vacinação contra o Covid-19 no Amazonas. O caso ocorreu logo após elas terem sido nomeadas para trabalhar na área administrativa de uma UBS (Unidade Básica de Saúde). Gabrielle e Isabelle Lins foram acusadas de furar a fila de vacinação em razão do sobrenome. Na internet, partiram da juíza Jaíza Pinto Fraxe os apelos para que as pessoas respeitem a ordem de vacinação e aguardem sua vez. A Prefeitura de Manaus, em defesa das médicas, declarou que ambas fazem parte do quadro de profissionais da saúde que atuam em UBSs no período noturno. No Twitter, o perfil Ismael Benigno comenta a respeito da “contratação” das filhas do empresário, que ocorreu no dia anterior à vacinação, comparando essa “bizarrice” à verossimilhança de uma cena de novela da Globo. Que país é esse?

Para coroar o caos desenhado na cidade de Manaus, que sempre me recebeu de braços abertos, um povo acolhedor, que agora sofre as consequências dos desvarios políticos e da própria população em busca de benefícios pessoais, fica a questão da ausência de coletividade, que parece ter sido esquecida tanto pelos cidadãos, principalmente a elite local, quanto pelas autoridades políticas — levando em conta questões individuais, sem o menor senso de humanidade, priorizando o pensamento individualista — , sufocada pela falta de oxigênio e de vergonha. Vale destacar boas ações que estão sendo realizadas por alguns empresários mais conscientizados e coletivistas, liderados pela Dra. Maria do Carmo Seffair, reitora de um dos grandes grupos universitários da região. Em vez de apontar culpados, partiu para a linha de frente da solução e encaminhou itens básicos aos hospitais, muitos deles faltantes pela inércia do poder público. Assim como essa atitude, existem muitas outras que precisam sempre ser destacadas. Brasil, mostra a tua cara em prol de vidas que dependem de seu discernimento, honestidade e verdade diante dos fatos.

Comentários

Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.