O ‘Rap’ da impunidade do Supremo

Julgamento do caso André do Rap revelou cena curiosa: a Corte Suprema mantendo a prisão de alguém foragido depois da soltura promovida pela própria Corte

  • Por Paulo Mathias
  • 18/10/2020 08h00 - Atualizado em 18/10/2020 10h19
Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil Plenário do Supremo Tribunal Federal Plenário do Supremo Tribunal Federal

Falar de rap, no Brasil, remete a um estilo de música que integra o movimento Hip-Hop e está associado a comunidades que residem em favelas, ou na periferia das grandes cidades. Por muito tempo, esse estilo musical foi associado à criminalidade, pois, no início, suas letras eram direcionadas a questões como tráfico de drogas e outras irregularidades. Hoje, tornou-se um estilo musical apreciado por diferentes camadas da sociedade e está ligado a temas atuais e polêmicos, como esse com que nos deparamos esta semana, a respeito da soltura do traficante, André do rap, pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello. E se esse momento pudesse ser representado pela voz de um rapper, ao resumir o Brasil de hoje, certamente, seria o ”rap da impunidade”.

Com base no artigo 316 do Código de Processo Penal, em que uma prisão preventiva deve ser reavaliada a cada 90 dias pelo juiz responsável, André ganhou a liberdade e saiu pela porta da frente do STF, reforçando o clima de impunidade que paira no ar do sistema judiciário brasileiro, ao conceder alforria a um dos chefes do Primeiro Comando da Capital (PCC), uma facção criminosa que atua dentro e fora dos presídios de São Paulo. Retido desde 2019 e condenado em segunda instância por tráfico internacional de drogas, tentativa de feminicídio e corrupção ativa, com sentença de 25 anos de prisão, obteve a regalia, com base em uma interpretação do ministro Marco Aurélio, a respeito do “constrangimento ilegal” da prisão, que, de acordo com o pacote anticrime, autorizou a sua soltura, seguida da fuga de André, em um jatinho fretado, poucas horas após ser libertado. Como onde há fumaça, há fogo, veio à tona a informação de que um dos advogados que impetraram a liminar de decisão de soltura do traficante internacional de 4 toneladas de cocaína, foi um dos assessores do ministro. Quando o habeas corpus era concedido em outros casos, caía em desistência, nas mãos de outros ministros. O que, no meio jurídico, é interpretado como desrespeito ao juiz natural, em que a justiça deve ser distribuída de maneira indeterminada, sem qualquer tipo de interferência ou protecionismo. Em resumo, a atitude do ministro Marco Aurélio, no caso André do rap, deixou de ser imparcial, tomando em defesa um dos traficantes mais perigosos da atualidade.

Diante dessas decisões, alguns ministros se manifestaram contrários, como foi o caso do presidente do STF, Luiz Fux, que suspendeu a decisão de Marco Aurélio e determinou uma nova prisão do traficante. Para Fux, a soltura do criminoso compromete a ordem e a segurança públicas, em razão de André ser considerado de alta periculosidade e com dupla condenação em segundo grau por tráfico internacional de drogas. Porém, como é comum nas decisões de justiça do país, houve certa morosidade em seu posicionamento, o que permitiu a fuga de André. Em julgamento, na tarde desta quinta-feira, o STF decidiu, por 9 votos a 1, manter a ordem de prisão contra André do rap. Mesmo com a maioria dos ministros votando a favor da decisão de Fux sobre a manutenção da ordem de prisão do traficante, alguns colegas acusaram o presidente do STF de extrapolar os poderes do cargo, por tomar uma postura de “censor e autoritário”, conforme as palavras do ministro Marco Aurélio. Foi uma cena curiosa: a Corte Suprema mantendo a prisão de alguém foragido, depois da soltura promovida pela própria Corte.

Tudo isso coloca em cheque o sistema de justiça brasileiro. Um país que mantém assassinos à solta e condena pais de família, por tempo indeterminado, que roubam alimentos por estarem desempregados. Como o caso ocorrido em fevereiro deste ano, em Bauru, interior de São Paulo, em que um homem foi acusado de furto, preso e mantido em prisão, por decisão da Ministra do STF, Rosa Weber, em razão do roubo de dois frascos de shampoo. Dois pesos, duas medidas. Porque aqui não funciona o dito popular “lugar de bandido é na cadeia”, e os bandidos saem pela porta da frente do STF, com direito a avião particular e destino seguro. Assim como leis que não atendem à nossa realidade e não respeitam as peculiaridades do nosso país. Isso tudo vem suavizar a realidade dos corruptos, favorecendo cada vez mais a impunidade que tramita na nação e está sob o olhar dos demais países. Enquanto o Brasil for visto lá fora como um país que faz vista grossa a essas questões, as consequências poderão ser desastrosas, como a repercussão negativa que a soltura de André do rap trouxe a nível internacional.

Com todos os senões e a nítida resistência por parte do Congresso Nacional em colocar em pauta essa questão, a solução para tanta impunidade deve conter, em regime de urgência, a aprovação de prisão após condenação em segunda instância e a revisão de trechos do pacote anticrime, considerados por muitos parlamentares, como desatualizados. Do contrário, serão necessários muitos raps da impunidade para alertarem sobre as injustiças que tomam conta do cenário judiciário do país, onde roubar shampoos é crime e traficar toneladas de drogas é passível de revisão e soltura dos envolvidos. Para nós, cidadãos brasileiros, resta torcer para que haja um maior discernimento por parte dos defensores das leis no país, que favoreça a segurança e faça jus ao poder que representam.

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