Chile vive dilema de jogar fora a água suja da banheira, mas não o bebê

Chilenos foram às ruas, voltaram-se contra o modelo de Previdência e puseram em xeque o sistema econômico liberal que criou o melhor padrão de vida entre os países latino-americanos

  • Por Samy Dana
  • 20/05/2021 14h14 - Atualizado em 20/05/2021 15h34
Alberto Valdés/EFE - 17/05/2021 Imagem da fachada do prédio da Bolsa de Valores de Santiago Prédio da Bolsa de Santiago, no centro da capital chilena; após derrota dos conservadores, principal mercado de ações do Chile caiu quase 10%

Regras estáveis e favoráveis ao mercado tornaram o Chile um fenômeno nas últimas décadas: um país da América Latina onde tanto a direita como a esquerda não abriam mão de princípios como a responsabilidade fiscal e a não intervenção. Como resultado, é um sucesso econômico. Um dos dois únicos países latino americanos entre os 50 primeiros colocados no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), na 43ª posição. Fica atrás apenas da Argentina, a 40ª colocada. O Chile também tem o maior Produto Interno Bruto (PIB) per capita na região, segundo o Banco Mundial. E a proporção de chilenos vivendo com menos de US$ 150 por mês, marco da pobreza, é a menor da América Latina. Mas, com a eleição da Constituinte no último domingo, o país vive um grande “e agora?” com seu legado liberal.

A economia chilena se voltou para o mercado no período do ditador Augusto Pinochet, que convidou economistas de Chicago, os famosos Chicago Boys, entre eles o ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, para promover uma série de reformas de cunho liberal. Foi criado então, por exemplo, o modelo de Previdência, que no Chile é diferente daqui. Cada trabalhador tem uma espécie de fundo para a aposentadoria com base no que contribuiu e os rendimentos. O governo só é responsável por um pagamento mínimo no futuro. Mas a eleição de uma Assembleia Constituinte dominada pela esquerda sinalizou que a economia chilena deve mudar.

O governo foi forçado a aceitar alterar a Constituição chilena em meio a grandes protestos no país contra o presidente, o liberal Sebastián Piñera. Mas, principalmente, contra o modelo econômico, apontado como responsável pela desigualdade e pelas tensões sociais no país. As principais críticas são feitas à Previdência, responsabilizada pelo aumento da pobreza entre os mais idosos. A população corroborou os protestos elegendo uma ampla maioria de políticos identificados com a esquerda, os maiores críticos do modelo liberal. Os conservadores elegeram menos de um terço dos constituintes e dificilmente conseguirão impedir mudanças sem convencer os adversários. O que leva a um pessimismo no mercado sobre o futuro da economia chilena.

Na segunda-feira, a Bolsa de Santiago caiu quase 10%, repercutindo a eleição. Ontem, a mineradora Lundin, com US$ 1,5 bilhão em investimentos no país, disse que vai congelar os novos projetos temendo mudanças na tributação do setor. A expectativa é de que as empresas pagarão mais impostos para financiar novos programas sociais e, possivelmente, uma mudança na Previdência. Talvez outras mudanças na economia. É onde mora o perigo. O mal-estar social dos chilenos, vivendo em um país ainda bastante desigual, é genuíno. As reformas não tornaram o Chile o paraíso na Terra. Mas seus avanços criaram o melhor padrão de vida entre os países latino-americanos. O desafio, usando a linguagem popular, é jogar fora a água suja da banheira sem dispensar também o bebê. Menos Estado na economia fez bem aos chilenos. Mais intervenção pode ameaçar os ganhos sociais das últimas décadas sem resolver a desigualdade.

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