Depois de zombaria e pouco caso, vacina chinesa salva a pátria

Presidente cansou de falar mal e fazer piadas com a CoronaVac, mas campanha de vacinação só começou no Brasil graças ao imunizante que seu rival bancou desde o início

  • Por Álvaro Alves de Faria
  • 19/01/2021 12h38 - Atualizado em 19/01/2021 12h39
Alex Falcão/Futura Press/Estadão Conteúdo O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, ao lado de alguns governadores, inicia a distribuição da vacina contra a Covid-19,

Ontem a cara do presidente não estava boa. Parecia gripado. Não, isso não. Estava incomodado com alguma coisa. Não queria falar muito, mas falou o suficiente. Bolsonaro surgiu das cinzas do incêndio de domingo, 17, para dizer que, depois de aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a vacina é do Brasil, não pertence a nenhum governador. Está correto. Mas ele sempre disse “a vacina chinesa do Doria”. Ele que falava isso, eu não. Bolsonaro endossa o que disse o ministro-general da Saúde, Eduardo Pazuello, que iniciar a vacinação em São Paulo, como fez João Doria, sem esperar a distribuição do governo federal ao país, foi um ato ilegal. Afirmou que, com a aprovação da Anvisa, não há o que se discutir mais. Certamente o presidente se referia a ele mesmo, que todos os dias falava mal da CoronaVac, chegando a criar medo na população. Chegou-se ao ponto de o Ministério da Saúde ter fechado um acordo para comprar 46 milhões de doses da vacina chinesa. Ao saber, o presidente ficou louco e desmoralizou publicamente o ministro-general Pazuello, que não disse uma única palavra. A seguir, Bolsonaro cancelou o acordo, dizendo que o presidente era ele e não abria mão dessa condição.

Alguns dias depois, o ministro pegou o vírus e foi internado. Bolsonaro foi visitá-lo no hospital, e a quebra do acordo com a farmacêutica chinesa acabou lembrada na conversa entre os dois. Resignado e com cara de infeliz, Pazuello não se estendeu no assunto, demonstrando constrangimento. Foi quando afirmou: “Um manda e o outro obedece”. É humilhação demais para um ministro de Estado. Um general. E eis que a mesma vacina escorraçada por Bolsonaro voltou vitoriosa ao cenário brasileiro, agora até com o aval encabulado do presidente. Mas saibam todos: a vacina é do Brasil, não é de nenhum governador. Mesmo numa situação bastante desconfortável e diante de tudo que está acontecendo no país, Bolsonaro não perdeu a chance de criticar a vacina chinesa em conversa com os seus apoiadores, dizendo que todos devem fazer tratamento precoce. Mas nada disse dos remédios que ele usa. Falou, em tom de zombaria, que a vacina que está aí tem só 50% de eficácia. Seria como jogar uma moeda de 50 centavos para cima e ver o que acontece. O presidente depreciou a vacina, adiantando que, até agora, ninguém sabe se ela terá efeitos colaterais ou não. Mas ninguém entendeu essa história de jogar a moeda. O que será que o presidente quis dizer com isso?

No cercadinho na saída do Palácio da Alvorada, Bolsonaro falou um pouco de política e disse algo que passou meio batido, mas merece alguma atenção. Afirmou que quem decide se um povo quer viver sob uma democracia ou uma ditadura são as Forças Armadas, observando que o Brasil ainda tem liberdade, mas que tudo pode mudar se a população não reconhecer o valor dos militares. Opa! Conversa dura para uma manhã de segunda-feira, quando o mundo sempre parece que está começando outra vez.

O ministro da Saúde decidiu antecipar para esta segunda-feira, 18, a vacinação no país, atendendo a pedido dos governadores. E começou a distribuir as vacinas produzidas pelo laboratório chinês Sinovac Biotech em parceria com o Instituto Butantan. A vacinação estava prevista para começar na quarta-feira, 20. O evento, com a presença de alguns governadores, realizou-se no terminal de cargas do Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, onde as vacinas estavam armazenadas. João Doria não compareceu, e, no seu lugar, foi o vice-governador, Rodrigo Garcia. A governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra, do PT, cobrou do ministro a antecipação de outros lotes da vacina que está sendo produzida pelo Instituto Butantan, pois o país ainda não tem autorização de utilizar os imunizantes produzidos no Brasil. Só podem ser distribuídos os que vierem da China. Diante disso, Pazuello respondeu apenas que isso não seria possível. E não se falou mais no assunto. O ministro assegurou que a vacinação no Brasil será a maior de todo o mundo, porque o Brasil é uma referência nessa questão e continuará sendo. Assinalou que o governo vai cumprir rigorosamente todos os acordos que fizer em relação à aquisição de vacinas, “em nome de nossa ética e nossa palavra”.

O ministro concedeu entrevista coletiva à tarde. Estava irritado. Mostrava que estava ali forçado, falando coisas desnecessárias. Mas notou-se uma certa nova postura, uma outra linguagem que não é a dele. Como o presidente Bolsonaro, o ministro-general falou em atendimento precoce e que caberá ao médico receitar o medicamento que desejar. Não falou em cloroquina. Houve ali uma sinalização de que não se falará mais no remédio do Bolsonaro que cura tudo, até dor de dente. O ministro, num tom um pouco acima do normal, afirmou que nunca recomendou remédio para ninguém, só atendimento precoce. A palavra agora é “atendimento”, não “tratamento”. Atendimento precoce. Quando uma repórter tocou nesse assunto, ele se irritou de vez. Chamando a bela repórter de “senhora”, Pazuello afirmou, sem esconder o mal-estar, que nunca indicou remédio para ninguém nem autorizou que alguém da sua pasta indicasse. O ministro admitiu que o governo federal tinha mesmo a intenção de iniciar a vacinação do Brasil contando com 2 milhões da vacina de Oxford, que viriam da Índia, sem recorrer à vacina chinesa do Doria. Esforçou-se para explicar por que as vacinas não vieram, mas não conseguiu. No final, pôs a culpa no fuso horário indiano, que impediu a negociação. Ninguém entendeu nada. Seja como for, Pazuello deixou mais ou menos claro que essas vacinas não virão para o Brasil. Melhor dizendo, o ministro não sabe se o país as receberá. O ministro deixou a coletiva dando graças a Deus. Aquilo tudo estava insuportável. 

Nesta segunda-feira, 18, o governador João Doria solicitou à Anvisa licença para uso emergencial da CoronaVac que está sendo produzida pelo Instituto Butantan. O pedido incluiu um lote com 4,8 milhões de doses já prontas e disponíveis. O Butantan espera produzir, em sequência, mais 35 milhões de doses. Essa produção depende a licença da Anvisa para o uso emergencial. Doria disse ter certeza de que o pedido será acatado. É melhor não ter tanta certeza assim. O governador encerrou seu dia ontem participando da vacinação na Unicamp, em Campinas. Sorridente, não cabia em si. Vamos ver quando passar esta primeira fase da festa mais do que justa. O problema é que o Brasil fez pouco caso o tempo todo, de tudo. Nem seringa providenciou. E dispensou a oferta das farmacêuticas que ofereciam vacinas. Enquanto isso, outros países foram comprando e fazendo acordos. Resultado: não sobrou nada. Ou quase nada. O Brasil vai ter de esperar. A não ser que a Fiocruz e o Instituto Butantan consigam o insumo e a autorização para produzirem as vacinas aqui. Se não fosse a vacina chinesa do Doria, seria um vexame sem tamanho. Ainda bem que o governador foi se virando sozinho. O que não se faz por amor? 

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