Mônica Calazans, primeira vacinada, representa um Brasil que quer seguir em frente

Aprovação da Anvisa e início da vacinação simbolizam um país quer dar um basta a essa tensão de todos os dias, numa rede de intrigas que não para nunca e se torna cada vez mais agressiva

  • Por Álvaro Alves de Faria
  • 17/01/2021 20h47
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ALEX SILVA/ESTADÃO CONTEÚDO - 17/01/2021 A enfermeira Mônica Calazans, de 54 anos, foi a primeira brasileira a receber a vacina contra a Covid-19

Foi um momento de muita emoção. É inegável. Só não aprovam os negacionistas que estão em todo lugar rogando pragas  acompanhadas de palavrões e descasos que já se tornaram insuportáveis. Muita emoção quando Mônica Calazans, enfermeira, negra, 54 anos, moradora em Itaquera, periferia de São Paulo, se tornou a primeira brasileira vacinada no Brasil. Como em todas as novelas literárias ou existenciais, o Bem sempre vence o Mal. E naquele exato instante, o Bem se fez notar mais forte e com um brilho que, infelizmente, muitos não notarão porque, simplesmente, não compreendem o momento brasileiro, achando que tudo tem que ser resolvido no tranco. Não. Não é no tranco. Não é na estupidez declarada e no deboche que já perdeu a graça porque transformou-se numa agressão a uma população  que apenas quer voltar à sua vida normal. Afinal, os maricas também têm o direito de ser felizes. E as famílias dos quase 210 mil bundões que morreram vítimas da Covid-19 merecem respeito. Sobrou ao Brasil exatamente aquela vacina que o presidente Bolsonaro, num ataque de nervos, disse que não compraria nunca, desenvolvida pelo Instituto Butantan, de São Paulo, juntamente com a farmacêutica chinesa Sinovac.

A vacina foi aplicada pela enfermeira Jéssica Pires de Camargo, de 30 anos, funcionária do Centro de Controle de Doenças e Mestre de Saúde Coletiva da Santa Casa de Saúde de São Paulo. A aplicação da vacina foi feita no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Assim que recebeu a vacina, já com o algodão de álcool no braço para aliviar a picada, Mônica Calazans passou a representar um Brasil que quer seguir em frente e quer dar um basta a essa tensão de todos os dias, numa rede de intrigas que não para nunca e se torna cada vez mais agressiva. Existem pessoas que não sabem viver em paz. Não sabem viver em paz e não admitem a paz na vida do outro. E nesse clima de emoção e até lágrimas, o governador João Doria deitou e rolou em cima do presidente, lembrando o palavriado que tem usado desde o aparecimento do vírus. O negacionismo é uma doença. Certamente sem cura. Sem cura porque implica em questões de ordem psicológica difíceis de mudar. No máximo podem ser equilibradas para que se mantenha, pelo menos, um pouco de civilidade.

Diabética, hipertensa e obesa, Mônica Calazans faz parte do grupo de risco. Mas ela está todos os dias no Hospital Emílio Ribas, desde o início da pandemia, ajudando a salvar vidas. Já vacinada, Mônica disse estar feliz, sentindo-se representante dos profissionais da saúde e da população brasileira. Mônica lembrou que foi criticada por muita gente quando se ofereceu para ser voluntária nos testes da vacina. E sofreu muita pressão para desistir. Mas não desistiu. Era, então, chamada de cobaia: “Não fui cobaia, fui participante de uma pesquisa”, disse ela, lembrando a dor de milhares de famílias brasileiras que choram seus entes queridos mortos e enterrados sem despedida nenhuma. Ao mesmo tempo em que Mônica Calazans era vacinada, um ministro da Saúde titubeante e sem saber direito o que dizer, iniciou uma espécie de pronunciamento em Brasília, chamando o ato da primeira vacina em São Paulo de “movimento político eleitoreiro”, que se aproveita do imunizante. Eduardo Pazuello observou que a vacinação tem de ser feita sem dividir o país. Assinalou, muitas vezes sem encontrar as palavras certas, que a vacinação tem de ser de forma igualitária e simultânea, sem deixar nenhum brasileiro para trás, sem discriminar cor de pele, crença religiosa, classe social. Pazuello garantiu que é isso que o presidente Bolsonaro está pactuando com todos os governadores.

O ministro general da Saúde afirmou, também, que o governo federal tem em mãos as vacinas do Butantan e da Astrazeneca/ Fiocruz e que poderia, numa jogada de marketing, iniciar a primeira dose em uma pessoa, mas não fez isso – conforme disse – em respeito a todos os governadores e prefeitos e todos os brasileiros. O ministro garantiu que fazer uma campanha paralela de vacinação, como São Paulo está fazendo é um ato ilegal. Assinalou que qualquer movimento fora dessa linha está em desacordo com a lei. Disse também que quebrar essa pactuação representa desprezar a igualdade entre os estados e entre todos os brasileiros, construída ao longo de nossa história com o Plano Nacional de Imunização. “Nosso objetivo é salvar vidas e não fazer propaganda própria”, disse Pazuello. O ministro adiantou que a vacinação no Brasil começará de verdade na quarta-feira, 20, demostrando desdém ao evento realizado em São Paulo. 

Doria acompanhou o pronunciamento do ministro pelo celular. Disse, então, que se sentia atônito com as declarações de Pazuello de que as vacinas foram compradas com o dinheiro do SUS, do governo federal, e não do dinheiro de São Paulo. O governador observou ser inacreditável que um ministro sem o menor conhecimento ainda minta ao país. Afirmou que a vacina do Butantan só está aqui porque foi um investimento do estado de São Paulo, sem um centavo do governo federal. Doria foi contundente: “Chega de mentira, trabalhe pela saúde de seu povo. Seja honesto, seja decente”, disse o governador. Perguntado sobre a acusação de estar fazendo golpes de marketing com a vacina, Doria afirmou que o governo federal faz golpes de morte com os brasileiros, com o negacionismo, com as recomendações para o uso de cloroquina, com a falta de vacinas, com a falta de seringas, falta de orientação, falta de bons exemplos e com frases sempre contra a vida. Falou ainda que a aprovação da Anvisa representa a valorização daqueles que trabalham pela vida, ao contrário dos que, há 11 meses, flertam com a morte. Doria disse também esperar que o Ministério da Saúde pare de recomendar a cloroquina, já que, como disse, em alguns casos a cloroquina mata. O governador repetiu que a vacinação no Brasil foi iniciada neste domingo, 17, em São Paulo e em hospitais de referência, além das populações indígenas. Adiantou que nesta segunda-feira, 18, entra em operação do plano logístico para vacinação dos profissionais da saúde.

O governador adiantou que determinou o envio imediato das doses de CoronaVac ao Ministério da Saúde. Informou que das 6 milhões de doses da vacina, 4.636.936 já estão à disposição do governo federal. As outras 1.357.640 serão distribuídas aos municípios paulistas. Dória informou ainda que enviará nesta segunda-feira, 18, 50 mil doses da vacina para os profissionais da saúde do Amazonas. E disse que ele mesmo tomará essa providência porque não confia no Ministério da Saúde. No evento no Hospital das Clinicas, foi vacinada também a primeira indígena do país, Vanusa Kaimbé, de 50 anos, técnica de enfermagem e assistente social, presidente  dos Conselhos dos Indígenas Kaimbé de São Paulo, que vive na aldeia Kaimbé Filhos da Terra, em Garulhos. 

No final de tudo, ganhou o Brasil que se livra desse tormento da vacinação, até porque a vacinação no Brasil é desaconselhada abertamente pelo presidente Jair Bolsonaro, sempre com uma palavra na ponta da língua para desmerecer qualquer iniciativa de combate à Covid-19. Quase 210 mil mortes de brasileiros vítimas do vírus ainda não bastaram. E nunca bastarão sejam quantos forem. O que se vê é uma crueldade que se acentua em quase todos os setores da vida nacional. Mas na questão das vacinas, esse desequilíbrio doentio vem se mostrando de maneira mais perversa. Bolsonaro lava as mãos. E se diz impedido pelo Supremo Tribunal Federal. Em outras palavras: virem-se! Infelizmente chegamos a isso, tudo tem que ser resolvido no grito. Se o país tivesse um governo civilizado, com certeza não seria assim. 

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