Nova regulamentação do saneamento básico ameaça a universalização do serviço

Expansão dependerá da capacidade dos municípios em reequilibrar os contratos vigentes

  • Por Fernando Vernalha
  • 08/08/2021 08h00
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Carolina Gonçalves / Agência Brasil Saneamento Básico no Brasil Decreto regulamenta a metodologia para que os prestadores demonstrem sua capacidade econômica para implementar as metas de saneamento

Um fator importante para o avanço da universalização do saneamento é a adaptação dos contratos vigentes, com vistas à incorporação de novas metas de disponibilidade e de qualidade para prestação do serviço. Este é um desafio que envolve municípios e companhias estaduais, que operam atualmente 70% do serviço por meio de contratos de programa e de concessão. A legislação preservou a eficácia destes contratos, mas exigiu que eles sejam alterados para contemplar novas obrigações de investimentos com o objetivo de garantir o atendimento de 99% da população com água potável, de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos. A lei exigiu também a incorporação nos contratos de metas quantitativas de não intermitência do abastecimento, de redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento.

Ocorre que a referida adaptação dos contratos para contemplar todas estas metas depende do seu reequilíbrio econômico-financeiro. É evidente que os novos encargos que serão assumidos pelos prestadores para a implementação destas metas acarretam um desequilíbrio nos contratos vigentes. Segundo a legislação, adaptações desta natureza dependem de um concomitante reequilíbrio econômico-financeiro. Não é possível exigir dos atuais prestadores – as companhias estaduais, no caso – a assunção dos novos encargos sem que lhes sejam garantidas as respectivas compensações. Pois o responsável por assegurar reequilíbrio dos contratos é o titular do serviço: os municípios, na grande maioria dos casos.

O problema é que os municípios não dispõem neste momento de “moedas” para reequilibrar os contratos e, com isso, viabilizar a implementação destas metas. As três vias possíveis para isso seriam: (i) a repactuação tarifária; (ii) os aportes públicos (subsídios), providos pelo município; ou (iii) a extensão do prazo dos contratos para esticar o tempo de amortização. A repactuação tarifária tem, neste contexto, um alcance limitado, em função de sua forte repercussão social e de sua submissão ao princípio da modicidade. A via dos aportes públicos parece também bastante improvável, dado o cenário de forte restrição fiscal e orçamentária pela qual passam os municípios brasileiros. Sobra apenas a extensão do prazo, essa sim uma possibilidade jurídica e econômica para que os novos investimentos possam ser implementados e os contratos reequilibrados.

Surpreendentemente, o decreto 10.710/2021, que regulamentou a metodologia para que os prestadores demonstrem sua capacidade econômica para implementar as novas metas, parece ter eliminado esta via. Nos termos do regulamento, os estudos de viabilidade exigidos para essa comprovação não poderão contar com a extensão de prazo dos atuais contratos de programa, o que limita as possibilidades para o reequilíbrio contratual. A meu juízo, o decreto afigura-se ilegal ao pretender restringir uma via lícita e possível para viabilizar o reequilíbrio e permitir a adaptação dos contratos. Mais do que isso, o decreto parece eliminar a única via factível para tanto – a menos onerosa às partes, no atual contexto.

Supondo-se impraticável o reequilíbrio, em função da restrição estabelecida pelo decreto, qual seria afinal o desfecho destes contratos? Sem o reequilíbrio, a adaptação do contrato não seria juridicamente viável. A provável alternativa seria o encerramento do vínculo. Mas como se trata de uma hipótese de extinção do contrato motivada por fato alheio à responsabilidade do prestador (lembre-se que o reequilíbrio contratual é de responsabilidade do titular), este teria direito à ampla e prévia indenização. Ou seja: para que o contrato de programa seja encerrado e os bens transferidos ao município, este será obrigado a indenizar a companhia estadual pelos investimentos feitos até aqui e não integralmente amortizados, e, ainda, por outros prejuízos suportados.

Como me parece difícil imaginar que os municípios disponham de recursos para isso, pela mesma razão pela qual não dispõem de recursos para custear o reequilíbrio contratual, haverá um impasse. Sem que o município possa apropriar-se e apossar-se dos bens da operação, em virtude da ausência de indenização, o contrato não poderia ser encerrado (a operação não poderia ser transferida ao município ou a um novo operador). O resultado prático seria a continuidade da operação dos serviços pelos atuais prestadores, mas sem o atendimento das novas metas de universalização. Trata-se de solução avessa àquela desejada pela lei. Ou seja: a prevalência da regra do decreto que limita a extensão de prazo para os fins do reequilíbrio contratual acabará por ensejar, na prática, a inocuidade da norma que impõe as novas metas, com o risco de frustração da própria universalização. É tudo o que não se quer. Mas infelizmente parece ser esse o provável desfecho do imbróglio criado pelo decreto 10.710/2021. A ver.

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