Vacinação privada contra a Covid-19 não pode acontecer de forma que permita o ‘fura-fila’

Distribuição dos imunizantes deve ser sempre guiada por um plano baseado em critérios científicos e sociais, ao invés de ficar a critério de cada empregador

  • Por Mônica Magalhães
  • 11/04/2021 08h00
REUTERS/Pilar Olivares/27/01/2021 mão segurando frasco de vacina com rótulo verde em primeiro plano Câmara dos Deputados concluiu votação e aprova projeto que libera a vacinação privada

Continua a briga sobre a compra de vacinas pelo setor privado: se devem ser permitidas, e, se forem, como as empresas poderão distribuir as doses e mediante quais contrapartidas para o Sistema Único de Saúde (SUS). Com longas demoras previstas para entrega, e o anúncio de que os fabricantes das vacinas aprovadas pela Anvisa vão priorizar contratos com o setor público, não está claro se o setor privado conseguiria trazer mais doses mais rápido. Se isso for possível, a ideia merece consideração, mas não pode ser implementada de forma que permita o “fura-fila”, ou seja, o desrespeito às prioridades do Programa Nacional de Imunização (PNI).

Normalmente, a pessoa ou empresa que compra um produto pode usá-lo e distribuí-lo como quiser — desde que dentro das regras da Anvisa. Porém, a pandemia não é um tempo normal. Estamos todos vivendo fora da normalidade há mais de um ano: o Brasil tem números impensáveis de mortos e enfrenta o colapso sanitário e desabastecimento do sistema de saúde, cidades entram em lockdown e governos e empresas podem vir a exigir prova de vacinação como condição de acesso a espaços e serviços. Para reduzir as mortes e desafogar os hospitais mais rápido, é necessário e proporcional exigir que empresas doem doses ao SUS ou as distribuam a seus funcionários segundo o calendário do PNI. A doação integra as doses compradas pelo setor privado ao programa nacional, e a distribuição privada, segundo os critérios do PNI, coordena esforços públicos e particulares. O combate a uma doença infecciosa exige ações integradas, e não iniciativas isoladas. A falta de coordenação nacional já atrapalhou demais o combate à pandemia no Brasil.

A fila precisa ser única por razões de justiça, de coordenação nacional e de saúde pública. Os grupos prioritários em si — ou seja, a ordem das pessoas na fila — podem mudar conforme as condições epidemiológicas. Por exemplo: se as reinfecções por certas cepas forem mais severas e fatais, e as vacinas puderem reduzir esses riscos, isso pode contar para a priorização. Ou se forem criadas novas vacinas que, diferente das vacinas atuais, tenham mais efeito na transmissão do que na severidade e letalidade da doença, as prioridades devem ser repensadas levando isso em conta. Ou também se uma futura variante do vírus hospitalizar e matar quem tem certas doenças respiratórias mais do que qualquer outro grupo, as prioridades na vacinação contra esta variante devem refletir os novos grupos de maior risco. O importante é que a distribuição das vacinas seja sempre guiada por um plano baseado em critérios científicos e sociais, ao invés de ficar a critério de cada empregador.

Além disso, internacionalmente, não faz muito sentido combater uma doença infecciosa com esforços nacionais fragmentados. A distribuição coordenada de vacinas segundo o nível de risco seria o ideal. O descontrole do vírus no Brasil aumenta o risco de surgimento de novas cepas. Se uma variante resistente às vacinas atuais surgir e se espalhar pelo mundo, o combate à pandemia retrocede globalmente. Neste momento, a prioridade  precisa ser acelerar a vacinação no Brasil e nos demais países onde está faltando imunizantes, para que o nosso país deixe de ser “ameaça para a segurança da saúde global”, e nenhuma outra nação nos suceda neste posto.

Considerando a possibilidade que a Covid permaneça conosco por anos, com variantes do vírus evoluindo e exigindo reforços periódicos da vacina (ou mesmo novas vacinas), é ainda mais importante refletir e chegar a conclusões justas, eficientes e estáveis sobre como os imunizantes devem ser alocados. O programa de vacinação atual vai estabelecer precedentes para como o Brasil e o mundo vão proteger sua população de novas cepas da Covid, e também das epidemias e pandemias do futuro. 

Comentários

Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.