Pandemia acelera o ensino híbrido na educação brasileira e cria desafios para 2021
Com escolas fechadas desde março, alunos e professores tiveram de se adaptar ao ensino remoto às pressas; reprovação de estudantes, grade escolar de dois anos em um e jornada ampliada são temas que estimularão os debates
O mundo da educação enfrentou intensos desafios – e transformações – em 2020. Em meados de março, com a chegada da pandemia da Covid-19 no Brasil, escolas públicas e privadas, assim como universidades de todo o país, suspenderam aulas e fecharam as portas do ensino presencial. Durante meses, alunos e professores precisaram se adaptar às nuances e dificuldades do ensino remoto. Nesse caminho, muitas foram as mudanças na forma de ensinar e na maneira de aprender. Meses depois, no entanto, a educação brasileira ainda segue com a principal dúvida: qual o destino do ensino em 2021? Em meio às incertezas pela pandemia, autoridades debatem como avaliar os alunos de forma justa, considerando o abismo educacional escancarado pela emergência sanitária. Quais critérios para aprovação ou reprovação dos alunos? Como mensurar o tamanho dos prejuízos e das consequências da pandemia na educação brasileira? E de que maneira é possível reduzir os altos índices de evasão escolar, que aterrorizam o ensino? Abordando esse contexto, a Jovem Pan conversou com autoridades e especialistas na área da educação para entender as mudanças, desafios e aprendizagens em 2020.
O dilema da reprovação
Em 11 de novembro de 2020, o governo do Estado de São Paulo anunciou a possibilidade de reprovar 500 mil alunos da rede estadual de ensino. Na ocasião, o secretário de educação Rossieli Soares negou que os estudantes seriam automaticamente aprovados, explicando que os 500 mil alunos, que representam 15% do total de matriculados do ensino fundamental ao ensino médio, não entregaram sequer uma das atividades desenvolvidas pelos professores ao longo do ano, o que levaria, portanto, a reprovação. O anúncio dividiu opiniões de professores e demais autoridades da educação, que questionam a entrega dos trabalhos como critério único para aprovação e mensuração de aprendizagem. Para o educador e presidente do Instituto Casagrande e da Alleanza Educacional, Renato Casagrande, a postura adotada pelo governo estadual tem uma característica mais punitiva do que de avaliação. “A medida do Estado de São Paulo tem um caráter mais punitivo do que de avaliação e voltado para aprendizagem, já que, para o governo, aqueles alunos que encaminharam as avalições, independente se aprenderam ou não, estariam aprovados automaticamente. E os alunos que não encaminharam seriam reprovados. Isso passa a ideia, e talvez seja esse o objetivo mesmo, de que, se esse alunos continuarem fora da escola, eles terão o ano perdido. Acredito que não é a melhor maneira, já que temos outras formas, talvez mais afetivas, de trazer os alunos para as escolas. Sabemos que muitos desistiam de estudar pelas condições precárias, então é muito difícil pensar em mais uma punição para esses alunos”, avalia. Assim como Casagrande, a professora Alessandra Seixas também considera problemática a reprovação direta dos alunos. Embora reconheça a dualidade e o dilema existente entre reprovar estudantes que não tiveram acesso ao ensino em 2020 e, ao mesmo tempo, aprovar alunos que não possuem base educacional para avançar a próxima etapa de ensino – a especialista considera que, mais uma vez, no tema da reprovação cabe intenso debate.
Em entrevista à Jovem Pan, o subsecretário de articulação regional da Seduc-SP, Henrique Pimentel, também falou sobre o dilema da reprovação e explicou os critérios, além da entrega das atividades, que serão considerados para aprovação efetiva dos alunos, citando entre os pontos abordados a aplicação da avaliação diagnóstica, obrigatória para todos os estudantes. Segundo ele, a expectativa do governo paulista é que a taxa de retenção na rede estadual, inicialmente estimada em 15%, seja reduzida. Para isso, ele destaca ações dos professores, escolas e autoridades para “a busca ativa dos alunos”. “Em 2020, o desempenho dos alunos, aquilo que você mensura em avaliações, ficou muito mais difícil de avaliar por causa da pandemia. Estamos tentando dar todas as oportunidades para o estudante não reprovar, mas entendemos que um aluno que não teve nenhum aproveitamento desde março não tem condições de avançar para o próximo ano letivo. A gente está tentando chegar aos estudantes de todas as maneiras possíveis, criando grupos no WhatsApp, os professores estão mandando até carros de som falando sobre a entrega dos trabalhos. Mas isso não substitui a presença do aluno, ele precisa mostrar que está engajado, que ainda está participando para que possa progredir”, comenta Pimentel.
Consequências e prejuízos
Além da discussão sobre os critérios para uma avaliação justa, outro ponto de debate são as estratégias necessárias para recuperar os prejuízos causados pela pandemia. Para além dos muros do ensino estadual, escolas da rede privada, assim como de responsabilidade municipal, também discutem quais as consequências da Covid-19 na educação brasileira. Falta de acesso aos conteúdos, baixa absorção do conhecimento e, até mesmo, a ampliação das diferenças entre escolas públicas e privadas estão entre os principais pontos numerados. A nível do ensino médio, o reflexo desta desigualdade educacional, possivelmente, será rapidamente identificado por meio de resultados dos principais vestibulares do país a serem divulgados no primeiro trimestre de 2021. Pensando nisso, a proposta de recuperação na educação no Estado de São Paulo prevê atividades de reforço aos alunos até 2022. Além disso, a proposta do governo de João Doria é estabelecer um “ensino casado”, considerando 2021 como uma extensão de 2020. Com isso, ao final de 2021, todos os alunos serão avaliados pelos conteúdos aprendidos ao longo dos oito bimestres de maneira conjunta.
Essa proposta de ciclo contínuo de ensino também é bem vista por especialistas como Renato Casagrande, que enxerga na medida uma saída para minimizar o “abismo educacional” e reduzir os prejuízos de 2020. “Sou favorável que a gente não pense em terminar o ano letivo e seja um contínuo em 2020 e 2021. Vamos fazer dois em um, 2020 e 2021 sem reprovação, sem pensar em término de 2020. Afinal de contas, temos muito mais a recuperar, então não vamos imaginar que termina o ano, que rompemos. Se o aluno estava no sexto ano, [pelo ensino contínuo], ele fará o sexto e o sétimo juntos. Se ele estava no primeiro ano, fará o primeiro e o segundo juntos. Essa é a proposta, inclusive, indicada pelo Conselho Nacional de Educação, de fazer um contínuo, dois em um. Esse é o melhor caminho para a gente minimizar as perdas de 2020.”
Embora reconheçam a extensão dos prejuízos e discutam novos caminhos para a educação, as autoridades descartam que 2020 tenha sido “um ano perdido” para o ensino público e privado. Para os especialistas, mesmo com os desafios, o ano de 2020 também marca uma etapa de transformação dos colégios, dos professores e alunos, que se desdobraram de inúmeras maneiras para, em um curto período de tempo, criarem um novo universo educacional. Além de incorreto, falar em “ano perdido” também é um desrespeito com os profissionais da educação e uma injustiça, defende Henrique Pimentel. “Foi um ano muito difícil, atípico em relação ao modelo de aprendizagem e muitos alunos tiveram dificuldades para acesso e adaptações a esse novo modelo. Mas também foi um ano de muito aprendizado em termos de novas tecnologias. É importante ter essa clareza que não foi perdido, tivemos muitos ganhos, mas sabemos que muitos podem ter ficado prejudicados. Então, precisaremos focar nesses que foram prejudicados no próximo ano letivo. Falar de 2020 como um ano perdido é um insulto ao trabalho dos professores, diretores, coordenadores e de toda a equipe escolar, que teve que se virar e ir atrás do alunos com uma busca ativa.”
Dinâmica do ensino
Alessandra Seixas concorda com a posição e também descarta que o ano letivo tenha sido invalidado – mesmo considerando que uma parcela dos alunos tiveram pouco ou nenhum acesso ao ensino remoto. Para ela, a pandemia alterou a dinâmica do ensino de tal forma que será impossível retroceder. “Se a gente considera 2020 um ano perdido, a gente desconsidera tudo que vivemos até aqui. Todos nós, educadores, fizemos de tudo para nos apropriar dos recursos, desse novo normal. A educação teve que ser transformadora em vários momentos. A quanto tempo a gente ensaia a introdução da tecnologia, de fato, no ensino? Sem romantizar, a pandemia trouxe essa oportunidade. Então, a pandemia existe, não tem como mudar essa realidade, a educação remota precisou ser vivenciada e o sistema não retrocede mais. Agora, a gente só tem a aprimorar. Então não foi um tempo perdido, pelo contrário, a gente pode analisar como oportunidade e ganho.”
A professora, que é especialista em educação inclusiva, também reforça a importância dos avanços para o ensino voltado a pessoas com deficiências, destacando o aspecto positivo da introdução tecnológica em diversas esferas de ensino desde a educação básica até ao ensino superior. “O ensino inclusivo sempre foi desafiador porque é necessário todo um planejamento estratégico. E a pandemia veio e mostrou as fragilidades que nós já tínhamos, nós tivemos que nos apropriar de recursos que não tínhamos antes. Então, também para o ensino inclusivo houve um salto em modos de como lidar com esses alunos, que já era um desafio”, sinaliza. Alessandra cita, no entanto, que mesmo com os desafios ainda maiores para os alunos de ensino especial em muitos casos os resultados foram surpreendentes, indicando, até mesmo, novas possibilidades para avanço da integração e socialização destes estudantes. “Trabalhando, na maior parte do tempo, por uma tela de computador, eles se deram muito bem. Como eles estavam na casa deles, no ambiente deles, eles se sentiram, inclusive, mais confortáveis para falar e participar. Eles tiveram mais facilidade no ambiente remoto e se sentiram mais seguros até para interagir, ao contrário dos outros alunos.”
Educação híbrida: o futuro que chegou
Ainda com relação as transformações impostas à educação em 2020, um dos pontos positivos da mudança foi a antecipação de uma proposta antiga dos colégios: a implementação da educação híbrida nas escolas. Entendida como a junção das atividades “onlines” e “offlines”, modelo é discutido há anos pelos educadores e, com a pandemia, acabou sendo efetivamente imposto. O especialista Renato Casagrande explica que para os próximos anos, o hibridismo educacional será o caminho, especialmente nos primeiros meses de 2021, considerando as medidas de isolamento social ainda imperam frente aos novos avanços da Covid-19. “As aulas presenciais e não presenciais, com certeza, serão o modelo em 2021. As crianças precisarão estar em casa e nas escolas porque teremos que dividir as turmas com estudantes alternando os dias. Por isso, teremos a implantação praticamente em todo o sistema educacional nacional brasileiro”, comenta. Segundo o educador, para o futuro, a expectativa é a educação híbrida seja ainda mais abrangente – um caminho para ampliar a jornada de estudos no país. “Uma forma de ampliarmos a jornada escolar é pela educação híbrida, já que alunos poderão ter momentos presenciais e momentos não presenciais. Mesmo que nós voltemos as aulas normalmente, os estudantes poderão ter um turno nas escolas e um turno em casa, não com aquelas tarefas cansativas, mas com aulas virtuais, com atividades dirigidas e que são muito mais motivadoras e eficazes na aprendizagem.”
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