Como o colapso da Índia diante da Covid-19 afeta o restante do mundo?

Novo epicentro da pandemia, país vive caos sanitário e recorde de casos e mortes; cenário pode interferir nas relações econômicas, diplomáticas e até na distribuição mundial de vacinas

  • Por Lorena Barros
  • 01/05/2021 10h00
EFE/ Idrees Mohammed Enfermeiro paramentado ao lado de corpo de homem morto Número de mortes faz com que cremações sejam realizadas a céu aberto na Índia

Com quase 20% da população mundial, a Índia é o epicentro da Covid-19 no mundo e registrou um cenário de caos com falta de oxigênio e leitos para pacientes, recordes diários de contaminações e óbitos, uma variante potente do novo coronavírus e até mesmo cremações coletivas a céu aberto nas últimas semanas. Para alguns especialistas, os números oficiais da doença no país asiático, que tem 18,8 milhões de infectados e 208 mil mortes causadas pela Covid-19, pode estar subnotificado e ser ainda mais impactante. “A comunidade científica internacional sempre teve dúvidas a respeito da qualidade dos dados em relação ao número de óbitos e em relação ao número de casos do país, visto que tem uma população acima de um bilhão de pessoas e que não tem uma rigidez em relação a cumprir normas de prevenção como, por exemplo, outro país que também tem mais de um bilhão de pessoas, que é a China”, explica o médico membro da Sociedade Brasileira de Infectologia, Alexandre Naime. Apesar de ficar a um continente inteiro de distância do Brasil, uma série de fatores faz com que o problema atual da Índia nos afete diretamente, assim como ao resto do mundo.

Mais contaminações criam variantes devastadoras

Assim como no Brasil, um dos reflexos da propagação desenfreada do novo coronavírus na Índia foi o surgimento de uma nova variante, mais infecciosa e resistente. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a B.1.617, identificada pela primeira vez no país asiático e relacionada à escalada da segunda onda, já ultrapassou as fronteiras continentais e foi encontrada no Reino Unido, Singapura, Bélgica, Grécia, Itália e Suíça, correspondendo a quase 40% dos casos globais. Dados preliminares de um estudo feito nos Estados Unidos indicam que a Covaxin, imunizante produzido com tecnologia indiana, pode não ser capaz de neutralizar a variante. Com isso, as fronteiras começaram a se fechar em países como Estados Unidos e França, o que pode ser seguido por outros no futuro.

Impacto na vacinação

Além da propagação de uma nova variante para o mundo, o caos sanitário na Índia, que é sede do Instituto Serum, um dos maiores fabricantes da Covishield, vacina produzida com tecnologia da Universidade de Oxford/AstraZeneca, pode afetar a dinâmica de produção ou de distribuição de imunizantes globalmente. “A própria população vai demandar uma vacinação muito maior e isso pode ocasionar a falta de insumos. A Índia, assim como a China, é um dos produtores de insumos para a vacina. Esse é um risco muito grande porque quando você tem uma crise em um país produtor, é óbvio que o mercado interno vai privilegiar a distribuição naquele país. Isso é uma coisa muito preocupante”, afirma o infectologista. Vacinas remanescentes em potências como Reino Unido e Estados Unidos, que poderiam ser distribuídas para uma larga gama de países, também terminam mudando de caminho e sendo voltadas exclusivamente para conter a crise sanitária.

“Está havendo uma mobilização, o Joe Biden prometeu enviar doses, a Inglaterra também. O problema também é que todo mundo está no mesmo barco, se você dá para o outro você tira de si. As vacinas da Índia atendem a todo o mundo. A vacina que você dá num gesto de boa vontade é a vacina que vai faltar”, explica o embaixador aposentado, professor de relações internacionais e criador do Centro de Estudos das Civilizações da Ásia da faculdade ESPM, Fausto Godoy. O especialista, que já foi representante do Brasil em Mumbai e tem contato frequente com moradores do país, lembra que o papel de distribuidor de vacinas, além de uma série de fatores econômicos e até mesmo religiosos, sustenta a boa imagem diplomática que a Índia tem com o resto do mundo, a tornando mais suscetível a receber ajuda humanitária do que o Brasil, por exemplo.

Com populações diferentes, Brasil e Índia estão mais próximos do que parece

As cenas indianas de caos nos hospitais pela falta de oxigênio, a mobilização nas redes sociais por doações e o choro desesperado dos parentes e amigos das vítimas do lado de fora das instituições de saúde lembram o mesmo cenário registrado em janeiro no estado do Amazonas e, em proporções menores, replicado no Brasil ao longo dos primeiros meses de 2021. “Manaus é a nossa Índia. Esse é um ótimo comparativo. Manaus em muito se parece com cidades da Índia, cidades com favelas e palafitas, todo mundo morando junto. A gente já viu duas tragédias acontecendo em Manaus, estamos vendo agora acontecer na Índia”, analisa o médico Alexandre Naime.

Os relatos dados por aqueles que moram no país asiático ao embaixador também mostram um espelho do desrespeito às normas sanitárias. “Como no Brasil, muitas pessoas estão indo à rua, não estão observando o lockdown, a máscara, é igualzinho. Você troca a imagem Índia pelo Brasil e é a mesma coisa. Isso evidentemente é uma bomba de retardamento, que logo logo vai explodir. Estamos falando em uma terceira grande onda, que pode ser ainda maior do que a segunda onda”, afirma Godoy, que lembra que este é o momento de estarmos alertas e levar a sério instruções recebidas de autoridades sanitárias. “Não esqueçamos também que as vítimas [fatais] não são mais só pessoas idosas. Agora é todo mundo”, pontua.

Cenário pode piorar

O embaixador Fausto Godoy lembra que, até o momento, não há sinal de uma estabilidade ou queda no número de contaminados no país. Enquanto isso, trabalhadores das grandes cidades comerciais viajam por dias para voltar às suas aldeias de origem e terminam contaminando os moradores de locais com menos estrutura médica e assistência. “Enquanto outros países na Europa ou, por exemplo, Israel, estão em uma curva descendente, a Índia está em uma curva ascendente. E uma curva ascendente na Índia é uma curva ascendente de uma população enorme”, pontua. Para o médico Alexandre Naime, a situação no país asiático é um alerta para outras nações emergentes. “A gente já sabia que isso iria acontecer na Índia. Se você não tem medidas de prevenção e não tem vacinação em massa, é uma questão de tempo. Não é surpresa nenhuma o que está acontecendo na Índia. Não vai ser surpresa se acontecer em Bangladesh, não vai ser surpresa se acontecer no sul da África, na África pobre. É completamente esperado”, afirma o infectologista. Ele lembra que a vacinação não impede a contaminação pela doença, e sim diminui os sintomas, colocando em risco aqueles que não estão imunizados. Mesmo sendo um “remédio amargo” para a economia, as medidas de distanciamento social são apontadas por ele como a forma mais efetiva de se controlar a pandemia.

Comentários

Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.