‘CPI vai investigar se governo trabalhou com a ideia de disseminar a doença’, diz Humberto Costa

Integrante da comissão, petista defende que primeiros convocados sejam os ‘gestores atuais’, como o atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e representantes do Itamaraty

  • Por André Siqueira
  • 25/04/2021 15h00
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Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado Parlamentar do PT discursa na tribuna do Senado Humberto Costa foi ministro da Saúde no primeiro governo Lula

Ministro da Saúde do primeiro governo Lula e um dos 11 integrantes da CPI da Covid-19, que será instalada na terça-feira, 27, o senador Humberto Costa (PT-PE) defende que a comissão investigue se o governo do presidente Jair Bolsonaro trabalhou deliberadamente com a ideia de disseminar o coronavírus, apostando na chamada imunidade de rebanho e relegando ao segundo plano a adoção de medidas restritivas e a compra de vacinas contra a doença. Costa falou à Jovem Pan na manhã desta sexta-feira, 23, e classificou como “trágica” a condução do Palácio do Planalto no enfrentamento à pandemia no Brasil. “É a pior condução que há no mundo inteiro. E ela não se justifica, porque, em verdade, temos uma expertise muito grande em lidar com doenças infecciosas. Temos um programa de imunização bem avaliado no mundo todo, temos expertise para lidar com ações de prevenção. Me parece que o governo adotou uma visão equivocada, elaborada com alguém que tem um pseudoconhecimento de saúde pública e que considerou que a melhor forma de superar a Covid-19 era com as pessoas se contaminando, para gerar a imunidade natural e, com isso, controlar a circulação da doença”, afirmou.

Às vésperas do início dos trabalhos da CPI, Humberto Costa defende que os primeiros convocados sejam “os gestores atuais”, com prioridade ao atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, para que a comissão consiga mapear o que está sendo feito no momento mais grave da pandemia no país e o que pode ser feito para que haja uma mudança de rumos. “Deveríamos começar com os gestores atuais. A pandemia continua, a situação não tem saída à vista. Fala-se, inclusive, que, por conta do aprofundamento da situação grave na Índia, teríamos uma redução na disponibilidade de vacina no mundo – isso coloca o horizonte de atender os mais vulneráveis ainda mais para a frente. Além disso, algumas coisas não estão claras. O que está faltando para que haja a liberação da vacina russa, a Sputnik V? Falta uma visita à fabrica? Por que ela não foi feita? A Anvisa precisa explicar. O Brasil comprou 47 milhões [de doses] dessa vacina, uma parte com entrega imediata. Por que isso não aconteceu? Queremos ouvir a Anvisa“, disse.

Confira abaixo a íntegra da entrevista, feita por telefone:

Como membro da CPI da Covid-19 e ex-ministro da Saúde, como o senhor avalia a condução do governo federal no enfrentamento à pandemia? É trágica. É a pior condução que há no mundo inteiro. E ela não se justifica, porque, em verdade, temos uma expertise muito grande em lidar com doenças infecciosas. Temos um programa de imunização bem avaliado no mundo todo, temos expertise para lidar com ações de prevenção. Me parece que o governo adotou uma visão equivocada, elaborada com alguém que tem um pseudoconhecimento de saúde pública e que considerou que a melhor forma de superar a Covid-19 era com as pessoas se contaminando, para gerar a imunidade natural e, com isso, controlar a circulação da doença. Isso pode valer para doenças simples, sazonais, mas não valeu para uma doença como essa, que acomete uma quantidade enorme de pessoas, que desenvolve sintomas graves, que exige atendimento do sistema de saúde básico e hospitalar. [A Covid-19] Não tem uma letalidade tão grande, mas, como é muito transmissível e grave, termina esgotando o sistema de saúde. Para isso não acontecer, são necessárias ações de prevenção, de isolamento social, de uso máscara, de adoção de lockdown. E essa estratégia não foi aceita pelo governo, porque se criou a falsa contradição entre saúde e economia. Agora, a economia não pode voltar a ser plena porque a condição de saúde não permite. A condução foi, inclusive, irresponsável. Se for verdade essa tese de que o governo deliberadamente apostou na disseminação da doença, na verdade, ele cometeu crime e precisa responder por isso.

Em mais de um ano de pandemia, o presidente Bolsonaro fomentou aglomerações, incentivou o uso de medicamentos ineficazes e ainda boicotou a compra de vacinas. Para o senhor, qual deve ser o foco da CPI? Como disse, o foco deve ser constatar se essa tesa é verdade. Há estudos, como um levantamento feito por pesquisadores da USP, que analisaram mais de 3 mil atos do governo, que apontam para a leitura de que o governo trabalhou com a ideia de disseminar a doença, de sabotagem às medidas restritivas, de recusa em gastar dinheiro, adquirir testes, EPIs, respiradores, não querer implementar leitos hospitalares, leitos de uti. Depois, a questão das vacinas, que foram relegadas ao segundo plano, e a existência da teoria da conspiração para poder se somar a essa visão, que é a ideia de recomendar os medicamentos que comprovadamente não tem eficácia pra enfrentar a doença.

Integrantes do governo e aliados de Bolsonaro no Congresso dizem que a CPI será um palanque político e que, por isso, sua instalação agora é inoportuna. Como o senhor enxerga isso? Não vejo desta forma. No Senado, nós temos uma liturgia política que é um pouco diferente do que acontece na Câmara dos Deputados e do que aconteceria se fosse uma CPMI. A prática da Câmara é muito menos, digamos, diplomática do que a CPI no Senado. As pessoas que estão na comissão, além de ser um número pequeno, 11 integrantes, são pessoas experientes, que conhecem da política, do regimento, do funcionamento da CPI. Ou seja, tudo aponta para ser um processo bastante cordato, diplomático. Os fatos são muito objetivos. Não temos que sair caçando coisas. Temos que complementar coisas que já são objetos de investigação, outras que são de conhecimento público, mas não foram investigadas. Como temos fatos, ainda que o bolsonarismo viva de realidade paralela, temos como corroborar esses fatos. Não vamos ter disputa política – pelo menos da nossa parte. Os senadores mais próximos ao governo vão tentar desqualificar a CPI, impedir que ela avance, mas aí entra a experiência dos senadores que estão lá para enfrentarmos. Eu estou muito tranquilo. A CPI vai cumprir um papel importante de avaliar erros e acertos.

Uma das possibilidades aventadas é a criação de subrelatorias, a principal delas para investigar exclusivamente os repasses a Estados e municípios, para dinamizar os trabalhos. Isso é viável? Não desviaria o foco dos trabalhos? A função dela [a subrelatoria] é permitir maior agilidade aos trabalhos, mas ela só é criada se o relator considerar que é necessário. Pode ser que o senador Renan Calheiros, provável relator, considere que não é necessário. Além do mais, são 11 membros. Se você separar três senadores para investigar Estados e municípios, uma relatoria para medicamentos sem eficácia, uma relatoria para tratar de outro tema, nós vamos ficar com uma CPI esvaziada. Não é necessário, mas é decisão do senador Renan. Precisamos saber se ele vai fazer e quais serão. Pode ser que considere que esse tema [dos repasses a Estados e municípios] seja tratado no geral. Essa celeuma criada é totalmente desnecessária: pela legislação, pela jurisprudência, sempre que uma CPI identifica algo conexo ao fato determinado, a investigação tem que ser feita. Ainda que você investigue pouco e mande para o Ministério Público, para o Tribunal de Contas, para Assembleias Legislativas, Câmara de Vereadores, mas isso tem que ser feito. Essa adição não era necessária. A CPI tem objetivo claro: investigar a responsabilidade do governo e analisar o caso do Amazonas.

O que podemos esperar da CPI já na próxima semana? Serão votados requerimentos para convocar testemunhas? Eu vou defender uma posição: deveríamos começar com os gestores atuais. A pandemia continua, a situação não tem saída à vista. Fala-se, inclusive, que, por conta do aprofundamento da situação grave na Índia, teríamos uma redução na disponibilidade de vacina no mundo – isso coloca o horizonte de atender os mais vulneráveis ainda mais para a frente. Além disso, algumas coisas não estão claras. O que está faltando para que haja a liberação da vacina russa, a Sputnik V? Falta uma visita à fabrica? Por que ela não foi feita? A Anvisa precisa explicar. O Brasil comprou 47 milhões [de doses] dessa vacina, uma parte com entrega imediata. Por que isso não aconteceu? Queremos ouvir a Anvisa. O Ministério das Relações Exteriores precisa dizer o que está sendo feito para a aquisição de mais vacinas, dos kits de intubação. Esse governo só trabalha sob pressão, por isso temos que cobrar soluções imediatas. Depois disso, paralelamente, vamos ouvir testemunhas, investigados, mas não sem ouvir a comunidade científica, acadêmica, para que externe sua leitura sobre a crise.

Integrantes da CPI dizem que o fato de o governo ter ignorado as primeiras ofertas de vacina da Pfizer será a “bala de prata” desta comissão. O senhor concorda? Esta é uma das principais apurações a serem feitas, sim. O Brasil poderia ter obtido, no fim do ano passado e em janeiro deste ano, 70 milhões de doses da vacina da Pfizer. Isso faria uma diferença muito grande. Estamos tendo, nos últimos dois, três dias, 2800 mortes. Se levarmos em consideração que, em grande parte, [a quantidade de óbitos] é formada por pessoas de idade mais elevada, pessoas que estão na linha de frente na luta contra a pandemia, profissionais da saúde, da segurança pública, se tivéssemos 35 milhões de pessoas vacinadas com a Pfizer, já faria uma diferença muito grande. A morbidade de pessoas que estão na faixa etária já vacinada diminuiu dramaticamente. A vacina não cumpre papel sozinha, mas é muito importante.

Em entrevista à revista Veja, o ex-chefe da Secom, Fábio Wajngarten, deu detalhes sobre a postura do governo em relação à Pfizer e afirmou que houve “incompetência” e “ineficiência” do Ministério da Saúde. Qual é o impacto de uma declaração dessa às vésperas do início da CPI e qual a avaliação do senhor sobre o conteúdo das revelações? Quanto à entrevista, existe um objetivo muito claro ali: transferir a responsabilidade do presidente Bolsonaro para outrem. Para Pazuello, para as equipes do Ministério da Saúde, isentando Bolsonaro, que é o grande comandante de tudo isso. Não somos tolos. O Wajngarten não está rompido com Bolsonaro. Mas, quando ele fala isso, ele dá muitos elementos para que possamos investigar e debater. Ele deve ser um dos principais investigados, porque, como secretário de Comunicação do governo, ele tinha a tarefa de divulgar medidas preventivas, a utilização de máscaras, o isolamento e, ao contrário disso, em um primeiro momento, tentou fazer um vídeo que desmotivava as pessoas a cumprir o isolamento, financiou uma série de meliantes que se intitulam blogueiros para divulgar tratamentos falsos, como a ivermectina, a cloroquina. Ele vai ser investigado.

Nos últimos dias, os integrantes da CPI têm sido pressionados e atacados nas redes sociais. Parlamentares bolsonaristas querem, inclusive, impedir que o senador Renan Calheiros assuma a relatoria da comissão. Como lidar com isso? A pressão já está existindo, de fato. Ela nunca para, na verdade, mas agora toma dimensão maior. Muitas vezes são ataques verbais. Embora agrida a nossa imagem, porque muitas vezes são informações mentirosas, ataques grosseiros, o problema é quando isso tende a produzir um clima que gere violência. No caso do senador Renan, temos que ter cuidado no sentido de preservar sua integridade física. Nós temos que ter esse mesmo cuidado, mas em um nível um pouco diferenciado. E fazer o que eu faço sempre: me atacou com mentira? Recorro sempre à Justiça, ao MP, para que confirmem as suas alegações. Na esmagadora maioria das vezes as pessoas voltam atrás, publicam retratação, ou são obrigadas a nos indenizar. Vou continuar até que aprendam que não se pode atacar a honorabilidade de ninguém.

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