Preso há um ano em inquérito dos atos antidemocráticos, Oswaldo Eustáquio denuncia torturas: ‘Apanhei até apagar’

Em entrevista exclusiva à Jovem Pan, jornalista revelou detalhes sobre período na cadeia, que o deixou paraplégico; Moraes arquivou investigação nesta quinta-feira, 1º, e pretende abrir uma nova, por organização criminosa

  • Por Giullia Chechia Mazza
  • 04/07/2021 14h00
Imagem: Youtube/Oswaldo Eustáquio oswaldo-eustaquio Acostumado a publicar conteúdos sobre política nas redes sociais, o jornalista Oswaldo Eustáquio percebeu sua vida mudar completamente há mais de um ano, quando foi preso pela primeira vez

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), arquivou na quinta-feira, 1º, o inquérito que investiga a organização e o financiamento de manifestações que ocorreram no último ano, e defenderiam causas antidemocráticas, como o fechamento do Congresso e do STF. Acostumado a publicar conteúdos sobre política nas redes sociais, o jornalista Oswaldo Eustáquio percebeu sua vida mudar completamente há mais de um ano, em junho de 2020, quando foi preso pela primeira vez em decorrência do inquérito. De acordo com o Supremo, ele seria alvo da investigação por violar a Lei de Segurança Nacional ao, supostamente, defender uma ruptura institucional — o que nega a defesa do jornalista. Em sua primeira entrevista desde o arquivamento do inquérito, Oswaldo Eustáquio denunciou à Jovem Pan o que considera “abuso de autoridade do Judiciário” e revelou detalhes sobre o último ano, no qual teve a liberdade restrita em prisões domiciliares e chegou a ser torturado no Complexo Penitenciário da Papuda, enquanto cumpria prisão preventiva em regime fechado. Confira os principais pontos da entrevista.

Embasamento jurídico da prisão

Para Oswaldo Eustáquio, sua prisão durou por mais de um ano “sem justificativas jurídicas”. Moraes usou uma justificativa exclusivamente política para determinar minha prisão. Isso é muito evidente. Me acusam de ser um radical que quer o fechamento do Congresso e do STF, mas não há nenhum registro em vídeo, áudio ou em outro formato, em que peço por isso. Ali eu participei de manifestações de apoio ao presidente Jair Bolsonaro, nunca defendi qualquer ato antidemocrático.” Na entrevista, o jornalista enfatizou que “a separação entre os Poderes é importante”. “O que eu disse, e sigo dizendo, sobre o STF é que os ministros também devem ser investigados, assim como todas as autoridades. Tudo correndo dentro das quatro linhas da Constituição. Por mais de um ano, fui mantido em cárcere privado pelo Estado brasileiro. Por muito tempo, Alexandre de Moraes, relator do inquérito, fingiu que não viu os pedidos de liberdade encaminhados ao Supremo. No Brasil, é proibido manter um réu preso por mais de dez dias sem que haja uma denúncia concreta. No entanto, eu estive nesta condição por mais de um ano”, concluiu. 

Primeira e segunda prisões

Por ordem do ministro Alexandre de Moraes, o jornalista foi preso temporariamente pela primeira vez no dia 26 de junho de 2020. Após identificar que o investigado no inquérito dos atos antidemocráticos estava no município de Ponta Porã, na fronteira com o Paraguai, a PF pediu a prisão de Eustáquio por “identificar risco de fuga”. “No final de semana anterior à minha prisão, participei de uma manifestação de rua em Brasília, na qual ganhei um crucifixo de um manifestante. O crucifixo era lindo, mas sou evangélico. Por isso, pensei: ‘Vou dar esta imagem para uma de minhas tias, que é muito católica’. Para entregar o crucifixo, me desloquei até Pedro Juan Caballero, a cidade que ela vive”, disse. Segundo Oswaldo, quando voltava de viagem, foi parado e preso pela Polícia Federal em Campo Grande. “Recebi um mandado de prisão sem motivo algum e ainda não descobri porque estive preso até agora”, completou. Após permanecer dez dias na prisão, o jornalista foi solto em 5 de julho sob a condição de respeitar uma série de medidas restritivas.

Já no final do mesmo ano, em 17 de novembro, a Corte decretou que Oswaldo permanecesse em prisão domiciliar com monitoramento por tornozeleira eletrônica. Na ocasião, ele desrespeitou as medidas restritivas impostas ao publicar nas redes sociais um vídeo com críticas ao então candidato do PSOL à Prefeitura de São Paulo, Guilherme Boulos. “De fato, desta vez descumpri uma medida, mas fiz isso em defesa da nação e da minha liberdade. Naquele momento, gravei um vídeo falando sobre as produtoras fantasmas de Boulos”. Em sua fala, Oswaldo fez referência à acusação que rondou o político Guilherme Boulos (PSOL) durante o pleito eleitoral de 2020. Estas denúncias afirmavam que o psolista teria contratado produtoras “laranja” para atuarem em sua campanha, mas a Justiça Eleitoral já se manifestou alegando que trata-se de uma “acusação fraudulenta”.

Arapuca

“Em prisão domiciliar, fui proibido de sair de casa. Só estava autorizado a sair em situações de extrema urgência, como emergências médicas ou quando iria prestar depoimento à Justiça — mesmo assim, antes de deixar minha casa precisava avisar a Central de Monitoramento da Papuda. Neste período, me tornei um alvo constante de ameaças de morte. Pessoas passavam em frente à minha casa mostrando armas, buzinando dentro de carros sem placa, xingando e ameaçando. Em um e-mail, contei o que ocorria e pedi proteção ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH), que marcou uma reunião virtual para o dia 14 de junho. Quando a data chegou, me enviaram uma mensagem para desmarcar a ligação afirmando que a reunião deveria ocorrer presencialmente no dia seguinte, em 15 de junho. Junto com meu advogado, informei a saída para a audiência à Central de Monitoramento da Papuda, estava tudo certo — quando caí em uma arapuca”, contou. O jornalista, que estava preso preventivamente em regime domiciliar, contou que “de repente, o Ministério enviou à Vara de Justiça um comunicado no qual afirmava que eu estava prestes a descumprir a ordem judicial que me proibia de chegar perto do STF”.

Por determinação do ministro Alexandre de Moraes, até então, Oswaldo deveria se manter afastado do Supremo por, no mínimo, um quilômetro de distância. “Nossa ida à audiência no prédio do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos possuía total respaldo legal porque a Central da Papuda estava avisada e o edifício em questão está há dois quilômetros do Supremo. Ou seja, o ministério desmarcou a audiência virtual, convocou uma reunião presencial e me denunciou, de forma ilegal, à Justiça. Foi uma covardice, uma arapuca. Não se deram nem o trabalho de medir a distância entre os prédios antes de enviarem a denúncia porque, até mesmo jogando no Google Maps, é possível constatar que, em todos os ângulos, o STF está a no mínimo 1,8 quilômetros do MDH.”

Chegada e agressões na Papuda

“A PF foi até minha casa e me prendeu no dia do aniversário da minha esposa, em 18 de dezembro de 2020. Fui para a Papuda e me jogaram direto no cárcere — na cela 13, espero que não tenha sido intencional. Essa foi uma das maiores sensações de medo que eu senti na vida. A cadeia tem suas próprias regras. Eu estava completamente sem fome quando cheguei e, por isso, ainda no primeiro dia, acabei discutindo com agentes penitenciários. Eles gritavam: ‘Por  porque você não comeu a marmita, seu animal?’ e eu respondia: ‘Me respeita, não sou um animal’. Como eles continuavam gritando, eu disse: ‘Se eu sou um animal, vocês também são’. Na cadeia você não pode sequer olhar no olho do policial, quem dirá responder. Devido à minha resposta aos agentes, toda minha ala foi castigada e me levaram para uma cela solitária.”

Como relatou, o jornalista foi vítima das primeiras agressões policiais durante o caminho até a cela solitária. “Enquanto eu passava, haviam dezenas de policiais no corredor. Quando passei pelo primeiro agente, ele disse: ‘Pede licença’. Pedi. Ele retrucou: ‘Você tem que dizer licença seu polícia’. Pedi. Então, quando passei pelo segundo agente, ele também me mandou pedir licença. Todos os outros repetiram a ação. Pedi para todos que vi, não sei se esqueci de algum ou se já estavam com raiva de mim, mas tomei meu primeiro golpe de cacetete nas costas — neste momento entendi que ali as coisas seriam diferentes. Quando eles dizem que você é um animal, você tem que concordar. Em seguida, um agente me pegou pelo braço. Um outro me enforcou. Torceram meus dois braços, meu pescoço e, quando me soltaram para respirar, espirraram uma espécie de spray de pimenta na cara. Apanhei igual cachorro. Eu já estava sem ar, machucado e ainda me espirraram aquilo, fiquei desnorteado, apaguei e só acordei na solitária, na cela 6″, revelou.

Acidente

As pessoas que acompanham o trabalho de Eustáquio ficaram sabendo no dia 22 de dezembro que ele havia sofrido um acidente na prisão. A informação foi confirmada através de sua esposa, Sandra Terena, que publicou no Twitter que o jornalista estaria “sem o movimento das pernas” por conta de uma fratura na quinta vértebra da coluna. Na entrevista, ele contou que, naquela ocasião, até sua esposa foi impedida de saber detalhes do acidente. “A solitária em que eu estava era ‘melhorzinha’ porque possuia chuveiro, vaso sanitário e pia. No dia 20, a água da Papuda acabou, voltando no dia seguinte. Como a ala em que eu estava tinha acabado de ser construída, quando liguei o chuveiro, a potência da água estava muito forte e acabou estourando o cano. A cela era pequena, então a água batia na parede e caía na cama. Em pouco tempo, a solitária começou a encher. Este era meu quarto dia na prisão, tentei pedir ajuda, mas ninguém me ouviu. Vi que precisaria parar a água sozinho. Subi no vaso para fechar o registro, mas ele estava escorregadio, eu estava sem comer há quatro dias e machucado. Então, acabei caindo e batendo muito forte a costela e as costas no vaso. Devido à dor, desmaiei instantaneamente, não vi mais nada”, afirmou. De acordo com o relatório divulgado pela Penitenciária da Papuda, Oswaldo caiu de bruços, com a cabeça submersa na água.

“Caí de bruços e quando os policiais me puxaram, cuspi 200 ml de água. Tiveram que fazer um trabalho pra que eu voltasse a ter o primeiro fôlego. Quanto tempo fiquei dentro da água? Não sei. Dois policiais me tiraram da cela, um puxando pela perna e outro puxando pelo braço. Fizeram os primeiros socorros e minha pressão estava 18 por 12. Devido à pressão alta, me chamaram para comparecer ao atendimento médico, mas quando tentei levantar não consegui sentir minhas pernas”, lembrou. Apesar das agressões, ele confirmou que o quadro de paraplegia foi causado por um acidente. “De fato, ocorreu um acidente. No entanto, há a hipótese de que a lesão na coluna tenha ocorrido quando os policiais me tiraram do chão de forma inadequada.”Oswaldo relatou que foi vítima de mais uma série de abusos no Hospital de Base do Distrito Federal, para onde foi deslocado após o acidente.

Diagnóstico de paraplegia e novas agressões

“O que mais me angustiava naquele momento era o barulho dos portões de ferro batendo. Era aterrorizante. Presos são proibidos de falar com os médicos por isso, quando cheguei ao hospital, o ‘policial Xavier’, responsável pela operação, conversou com a médica de plantão e contou que eu sentia falta de ar e dores na costela. Eu não sentia dor alguma nas pernas porque, simplesmente, não sentia minhas pernas. Fiz apenas exame do tórax, que não apontou fratura nas costelas. Por isso, a médica me mandou embora. Eu estava na cadeira de rodas, não sentia minhas pernas e estava voltando para a cadeia. Fiquei nervoso e perguntei: ‘Xavier, como vamos retornar se eu não estou andando?’. Ele respondeu: ‘Na cadeia há uma ala para cadeirantes’. Dei um tapa forte na parede do hospital e comecei a gritar que não sairia dali sem um laudo médico. Questionei a médica do porquê de não sentir minhas pernas e ela me respondeu com outra pergunta: ‘Mas você não é paraplégico?’. Respondi: ‘Se sou, sou desde hoje’. Ela ficou super constrangida e me levou para fazer uma tomografia na coluna, que apontou uma fratura na vértebra T5 e um desvio na T6.” Os médicos então decidiram internar Eustáquio, mas mesmo com o resultado do exame em mãos, ele contou que enfrentou resistência do ‘policial Xavier’ para obter a permissão para ser hospitalizado.

“O policial pensava que eu fingia não sentir minhas pernas. Por isso, pediu para a médica provar isso. Ela pegou uma caneta enfiou na minha perna até ficar roxo. Eu não sentia absolutamente nada. Ela reiterou: ‘Se sentisse qualquer coisa, estaria chorando’. Ainda sim, o policial Xavier não acreditou e repetiu a ação, fincando a caneta até que minha perna sangrasse.” A esposa de Oswaldo soube do acidente através de um seguidor do jornalista, que o reconheceu no hospital, bateu uma fotografia e publicou nas redes sociais. “Fui reconhecido por um paciente que tirou uma foto e postou. Assim minha esposa ficou sabendo que eu estava internado, se deslocou até o hospital para me ver, mas foi impedida. Minha médica, a doutora Nise Yamaguchi, pegou um voo para me encontrar, mas também foi impedida. Só pude ver meu advogado para, como indicaram os policiais, esclarecer que aquilo havia sido um acidente e nada mais. Quando meu advogado chegou, disse para ele: ‘Fala para a minha esposa que trata-se de um acidente “JAPU”, ela vai entender’. A Sandra possui descendência indígena e, em Guarani, “JAPU” significa mentira. Por isso, ela compreendeu que havia algo de errado. Me proibiram de vê-la e de me reunir com meu advogado por 40 dias, o que é ilegal.” Antes de sofrer novas agressões policiais na cadeia, Oswaldo disse que não pôde prosseguir o tratamento para recuperar o movimento das pernas. “Algum tempo depois, meu advogado conseguiu uma liminar que autorizava o tratamento com a doutora Nise. Então, ela começou a aplicar ozônio nas minhas pernas. Após a primeira aplicação, senti até frio nas pernas – o que eu não sentia há dias. No entanto, antes da segunda sessão, mandaram interromper o tratamento porque o método não possui comprovação científica.” Atualmente, o jornalista continua na cadeira de rodas. “Meu estado clínico ainda é de paraplegia, mas estou me esforçando muito para reverter isso. Trabalho para voltar a andar, mas não posso afirmar que conseguirei.”

Após os primeiros dias de tratamento no Hospital de Base, o comunicador foi transferido para o Hospital de Apoio de Brasília, onde relata ter sido agredido “na cadeira de rodas”. “Neste hospital, eu fazia sessões de hidroterapia. Em Brasília faz muito sol e a piscina na qual eu fazia os exercícios é a céu aberto. Como eu estava ficando muito queimado, minha fisioterapeuta recomendou que minha esposa levasse um protetor solar. Quando Sandra chegou, foi proibida de entregar o produto. Mesmo assim, minha esposa deixou o protetor na recepção, mas o policial deu a ordem para que o jogasse fora. Eu disse que ele não poderia fazer aquilo porque tratava-se de uma recomendação médica. Ele respondeu: ‘Posso fazer o que eu quiser, eu sou o Estado’. Quando ele repetiu isso pela terceira vez, me aproximei e afirmei: ‘O que o senhor está fazendo não representa a farda que usa’. Enfurecido, ele me mandou a virar de costas e ficar de cócoras com as duas mãos na cabeça. Como eu poderia fazer isso se estou, até agora, na cadeira de rodas? Como não fiz, ele empurrou minha cadeira longe e me deu três chutes”. De acordo com o jornalista e sua defesa, as denúncias sobre as agressões sofridas estão tramitando em segredo de Justiça no Ministério Público do Distrito Federal.

Futuro político

Após o arquivamento do inquérito que o investigava, Oswaldo pretende ingressar oficialmente na política, lançando-se às eleições como candidato ao Senado. “Só temo a Deus nesta vida, não tenho medo dos homens — sobretudo daqueles que não agem com Justiça. Não tenho medo de possíveis represálias. Estou desenhando uma denúncia para apresentar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. No texto, vou denunciar o Estado brasileiro, por meio do STF, por ter mantido um jornalista em cárcere privado e pelo fato de eu ter perdido meus movimentos enquanto estava sob custódia do Estado. Nunca quis ser político, sou comunicador. No entanto, me candidatarei ao Senado pelo Paraná para poder julgar com Justiça os ministros do Supremo, que me julgaram com injustiça”, concluiu.

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