‘Pedalada’ dos precatórios ameaça a credibilidade institucional do Brasil

Proposta do governo federal, de custear o Renda Cidadã com recursos dos precatórios, flerta com o ‘calote’; honrar dívidas com cidadãos é o mínimo que se espera de um país com alguma maturidade civilizatória

  • Por Fernando Vernalha
  • 04/10/2020 08h00
Alan Santos/PR Presidente se reuniu com ministros e líderes do Congresso para alinhar detalhes do Renda Cidadã e segunda etapa da reforma tributária

O governo anunciou há poucos dias sua proposta de custear o programa social do Renda Cidadã por meio da utilização de parcela dos recursos do Fundeb e de recursos destinados ao pagamento de precatórios. A ideia do governo, ainda em discussão, seria inserir no texto das propostas de emendas constitucionais do Pacto Federativo e Emergencial uma limitação para pagamento de precatórios de 2% da Receita Corrente Líquida da União. Esta trava reduzirá significativamente os valores destinados ao pagamento de precatórios, “liberando” recursos para custear o programa do Renda Cidadã. Apenas para se ter uma ideia, o orçamento previsto para o pagamento de precatórios no ano de 2021 é da ordem de R$ 54,7 bilhões. Com o achatamento deste montante em função da limitação proposta de 2% sobre a RCL, o orçamento cairia para R$ 16 bilhões. A diferença seria carreada para viabilizar o custeio de parte do benefício social.

A proposta do governo federal flerta com o “calote”. O estabelecimento deste limite significa, na prática, deixar de pagar milhões de credores da Fazenda Pública, cujos créditos já estão reconhecidos judicialmente e devidamente orçamentados. É uma solução que sacrifica um dos valores mais caros para a manutenção de um ambiente institucional e jurídico minimamente aceitável para atrair investimentos e negócios para o país: a fidúcia. Frustrar o pagamento destes créditos é uma péssima ideia para um governo que vinha pregando o apreço à segurança jurídica e à credibilidade institucional.

Litigar contra a Fazenda Pública já não tem sido fácil no Brasil. Realizar créditos em face dela tem sido ainda mais difícil. Há pelo menos dois obstáculos difíceis de transpor. Um deles é a ineficácia do sistema judicial, moroso e repleto de prerrogativas para o ente público. O outro é o próprio sistema de precatórios, algo muito particular da realidade brasileira. Na teoria, ele é um meio de oferecer organização e previsibilidade ao orçamento dos entes públicos, fazendo com que os seus débitos sejam enfileirados e orçamentados. Mas, na prática, tem funcionado como um obstáculo para que os credores da Fazenda Pública possam realizar seus créditos. Qualquer cidadão ou empresa que tenha contra si uma condenação a pagar uma quantia certa transitada em julgado, terá de fazê-lo imediatamente, sob pena de penhora imediata de seus bens e de valores depositados em conta corrente. Os entes públicos brasileiros, não. Em regra, quem conquista judicialmente um crédito perante a Fazenda Pública após longos anos de discussão, tem de enfrentar outros tantos anos na espera da fila dos precatórios.

Apesar desta obrigação ter sido negligenciada historicamente pelas Administrações Públicas, deixar de pagar precatórios é um ilícito grave no Brasil. A Constituição, em seu artigo 100, parágrafo 5º, estabelece a obrigação de inclusão no orçamento das entidades de direito público verba necessária ao pagamento de seus débitos constantes de precatórios judiciários. Além disso, o mesmo artigo, no seu parágrafo 7º, equipara a tentativa pelo presidente do tribunal competente de retardar ou frustrar o pagamento de precatório a “crime de responsabilidade”. O não pagamento de precatório pelo agente público é também uma hipótese de improbidade administrativa, nos termos dos incisos I e II do artigo 11 da Lei 8.429/1992. Apenas a reorganização de precatórios de alto valor é admitida pela Constituição e pela legislação infraconstitucional, com vistas a preservar o equilibro fiscal do Estado.

A proposta do governo, por isso, desafia todo um ambiente jurídico e institucional lastreado na presunção de cumprimento pelo Estado de seus encargos legais e fiscais. Honrar suas dívidas com seus cidadãos é o mínimo que se espera de um país com alguma maturidade civilizatória. Negligenciar o pagamento destes créditos já constituídos por meio de precatórios deve ser visto como uma violação gravíssima ao Estado Democrático de Direito. Além disso, é uma sinalização desastrosa para os mercados, que põem em dúvida a credibilidade institucional do país. O objetivo de custear programas sociais não justifica o sacrifício de milhares de brasileiros que conquistaram, a duras penas, seu direito de receber seus créditos em face do Estado. Afinal, há possibilidades diversas para economizar recursos públicos e gerar espaço fiscal para promover programas sociais. Ao governo cabe encontrá-las e implementá-las. O que não se pode admitir é que isso seja custeado com o bolso e o direito alheios.

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