Jovem Pan
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Um condenado na prisão hoje vive melhor do que um cidadão confinado

Medidas restritivas mais severas diminuem lista de locais que poderão abrir na cidade

Às vezes penso que estamos presos numa obra do inventor do realismo mágico, Gabriel García Márquez. Os decretos de confinamento, que agora têm o nome chique de “lockdown”, começam e incomodam, mas são prolongados e acabamos nos acomodando. Em alguns casos, cidades já estão há quase um ano entre abres e fechas intermináveis e que fogem à lógica e à compreensão das pessoas. E o povo segue e vai se acomodando em casa. No clássico “Cem Anos de Solidão”, uma fase de chuva começou assim. Chovendo, chovendo e as pessoas foram se acomodando. No final ninguém se lembrava mais como eram os tempos sem chuva. Assim se passaram quatro anos, 11 meses e dois dias. A situação chegou a um grau de umidade que um dos personagens viu quando um peixe entrou pela janela e saiu pela porta dos fundos, se equilibrando nas gotas suspensas no ar que já tinham transformado tudo em lodo.

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Já existem lodos sendo formados em várias casas e apartamentos. A dificuldade de convivência já é explícita. As empresas estão sendo fechadas e paralisadas. Em certas situações, somos atendidos com porta semicerradas, como quem compra produtos contrabandeados ou drogas. O quadro é grave, mas existem os que ficam em pior situação. Pode acreditar que já existem brasileiros criando lodo nos dentes por falta de uso. Os autônomos estão sem saber o que fazer e ganham durante o dia o que comem à noite. Sem reservas e sem previsão do fim do temporal, se aquietam em casa cada vez mais, aceitando a condenação de prisão domiciliar sem crime e sem julgamento. A situação de ex-trabalhadores é crítica, e pior do que a prisão.

Lembro-me do ex-deputado e hoje vereador Arnaldo Faria de Sá levando ao plenário da Câmara o menu das prisões em São Paulo. São cinco refeições diárias. O café da manhã com pão e manteiga, no meio da manhã outro lanche e, pontualmente, às 12 horas o almoço. Um novo lanche é servido no meio da tarde, e o jantar acontece às 18 horas. Para encerrar, o lanche noturno, um café com pão. Não foi só pelo número de refeições, mas o deputado lia o menu da semana, com descrições de dar água na boca. Segunda, bife à rolê. Na terça, strogonoff de frango; na quarta, bife acebolado; na quinta, rabada; e na sexta, para não cair o nível, uma bela feijoada. Todas as refeições acompanhadas de sobremesa e suco.

O quadro traçado é humilhante para o trabalhador. Um preso oficial vive muito melhor do que o cidadão livre, cumpridor das suas obrigações. Já que o município e o estado decidiram que os brasileiros devem ficar enclausurados, teriam também a obrigação de servir um menu aceitável, como nas cadeias. O pior da história é que não há horizonte previsto. A chuva apenas começou. Não há previsão de estiagem e nem mesmo a possibilidade de sol no fim do dia. O que anima é que as janelas são abertas, são os dias de neblina para colocar a roupa para secar. Depois volta tudo de novo, fechamentos, dificuldades para levar a vida, e a resignação. Esta situação não dura para sempre, e as tensões estão subindo, indicando que os fechadores oficiais terão dificuldades futuras. Não há como esperar quatro anos, 11 meses e dois dias para a chuva passar e sair de casa ao encontro do sol.

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