A desobrigação do uso de máscara ao ar livre no Rio ameaça o combate à pandemia?
Especialistas discordam em diversos pontos, mas a maioria acredita que os fluminenses podem puxar a fila se obedecerem os critérios estabelecidos para a retirada gradual do equipamento
Na última quinta-feira, 28, o governo do Estado do Rio de Janeiro sancionou a lei aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado (Alerj) que desobriga o uso de máscaras de proteção contra o novo coronavírus em espaços públicos abertos e sem aglomerações. Segundo o decreto, assinado pelo governador Cláudio Castro (PL), a medida gradativa deverá observar parâmetros de distanciamento, tipo de ambiente e percentual de vacinação da população (no mínimo 75% das pessoas com mais de 12 anos ou 65% da população total). Além disso, o mapa de risco semanal dos municípios deve apontar indicadores epidemiológicos muito baixo, baixo ou moderado. A regressão da situação, com piora do quadro, estabelece o retorno da obrigatoriedade da máscara. Segundo infectologistas, a determinação do governo segue critérios rígidos de segurança sanitária para o momento e o contexto e, por isso, não deverá atrapalhar o combate à pandemia da Covid-19 no Estado e em todo o país. A Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), porém, critica o poder público por legislar sobre a questão antes da resolução da crise sanitária.
Segundo Alexandre Naime, chefe do departamento de infectologista da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e consultor para Covid-19 da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e da Associação Médica Brasileira (AMB), os critérios estabelecidos para a retirada da máscara no Rio foram muito criteriosos e detalhados. “Levaram em consideração a questão da população vacinada. Noventa e nove por cento dos cariocas, por exemplo, já tomaram a primeira dose da vacina, e 65% já estão imunizados com as duas doses. Esse é um dado alto que reflete, principalmente, na questão de hospitalização. Eles estão com uma hospitalização muito baixa, redução de casos graves. Há pelo menos dois meses, menos de 10% dos leitos da Covid-19 estão ocupados no Rio. E o último determinante principal é a questão da taxa de transmissão, que no Rio de Janeiro está em 0,7 do índice R0 [média de contágio por pessoa infectada]. Isso mostra que a transmissão está realmente muito baixa. E ainda se fala em ambientes abertos e sem aglomeração. Então, levando em consideração tudo isso, faz sentido. É o que a gente pede, que esses critérios sejam estabelecidos na tomada de decisão da flexibilização”, destaca Naime.
Para ele, é pouco provável que a transmissão do novo coronavírus volte a subir no Estado do Rio se os critérios determinados no relaxamento do uso de máscaras forem seguidos. “Tem que se discutir esse tipo de medida porque todas as outras restrições já foram bastante flexibilizadas. E, em ambiente aberto, a transmissão é muito pouco provável. Há que se fazer, dentro desses critérios, esse tipo de tentativa de flexibilização para que a gente possa voltar ao antigo normal com segurança, sem que a saúde pública seja colocada em xeque. Se a liberação de máscaras fosse em ambientes fechados, aí seria temerário. Esta será a próxima fase, quando haverá a liberação quase total, mas só quando a taxa de transmissão cair ainda mais”, pontua o médico.
De acordo com Raquel Muarrek, infectologista da Rede D’or, é importante lembrar que a pandemia ainda não chegou ao final e que o uso de máscaras deverá continuar — no rosto do cidadão fluminense e do brasileiro — ainda por muito tempo. “Agora, diversos países estão voltando ao aumento de casos, mesmo com populações muito vacinadas. A máscara é a maior proteção que a gente tem para evitar a transmissão cruzada. Vamos ter que nos acostumar a ela. Eu ainda tenho casos novos semanais. O risco ainda existe. A máscara veio para ficar“, contrapõe. Ainda assim, ela concorda com Alexandre Naime e afirma que, observados os critérios necessários e obedecido o rigor no controle epidemiológico, é possível retirar a obrigatoriedade do equipamento: “A principal coisa é ter um controle de transmissão organizado por município. Que cada comissão tenha, nas suas avaliações, a sua taxa. Só por meio dela a gente pode suspender ou diminuir o uso da máscara, paralelamente à vacinação. Tendo a vacinação de, no mínimo, 80% a 90% da população, com duas doses completas, e uma taxa de transmissão baixa, em queda, a gente consegue tirar essa máscara da obrigatoriedade em ambientes abertos. Temos que ter maior controle epidemiológico para a gente correr atrás do que é necessário para a população. A gente está querendo tanto voltar a normalidade, mas não podemos ter riscos”.
O infectologista da Unesp ressalta que a busca pela antiga normalidade deve ocorrer — não de maneira rápida, mas com segurança — e diz acreditar que outros Estados em breve tentarão seguir as medidas adotadas no Rio de Janeiro. Nesse possível contexto, ele ressalta a importância de o rigor dos critérios de segurança respaldarem a decisão política. “Tanto a flexibilização quanto as medidas de enrijecimento, de restrição, precisam ter um duplo sentido. Não se pode somente caminhar no sentido de colocar restrições se não houver um sentido científico para isso. Assim como a gente reclamou quando houve uma flexibilização exagerada, em outubro e novembro do ano passado, quando a taxa de transmissão estava muito alta, o contrário também, porque a população não aguenta tanto tempo com medidas de restrição. Então, é melhor dosar isso de forma correta do que se fazer uma medida excessiva”, finaliza Naime.
Apesar do cenário positivo traçado pelos infectologistas, há profissionais de saúde que criticam o governo do Rio de Janeiro por sancionar a medida, sob o argumento de que a desobrigação em espaços públicos, neste momento, poderá criar muita confusão e gerar riscos desnecessários. É o caso de Renato Kfouri, diretor da SBIm. “Não acho que vá ter grandes impactos, mas é uma medida absolutamente desnecessária. O poder público incentivar o não uso de máscaras é completamente fora de cabimento. Não há necessidade nenhuma de o governo querer legislar nesse tema, neste momento da pandemia, quando não temos os idosos com suas doses de reforço ainda nem crianças vacinadas, com uma comunicação difícil para estabelecer o que é ambiente aberto e fechado, o que é aglomeração. As pessoas podem andar na rua sem máscara, mas precisam colocá-la para entrar em algum espaço; entra no transporte público, tem que pôr a máscara, sai e pode retirar. Isso cria complicações. E, o pior, a pergunta principal: para quê? Qual o benefício? Não estamos falando de volta às aulas, de volta do comércio, espetáculos de arte, futebol… Não estamos falando da flexibilização de algo que está estrangulado. Desincentivar ou retirar o uso de máscara não traz benefício nenhum para a população, e pode trazer riscos. Não sei se vai trazer, se vai impactar ou não. Mas é completamente desnecessário.”
“Tanto trabalho para educar a população sobre o uso de máscaras corretamente e esse tipo de iniciativa só entra na contramão. No fim da pandemia, a gente poderia começar a tocar nesse assunto”, continua Kfouri. “Ficar discutindo se é o momento, se o risco é baixo ou alto, ficar medindo indicadores…. Pode até ser que o risco seja baixo mesmo, que no momento seja possível fazer isso, mas para que discutir uma medida que vai criar confusão? Todo mundo sabe como o coronavírus é transmitido. Se uma pessoa está em um parque, sem ninguém por perto, é claro que ela sabe que pode ficar sem máscara. Mas o poder público legislar sobre isso cria confusão e uma zona de perigo em um momento em que a gente ainda não ganhou a guerra. Algumas batalhas estão ganhas, mas a guerra ainda não“, alerta o diretor da SBIm.
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