Aumento de moradores de rua em SP equivale ao total do RJ; especialistas defendem abordagens abrangentes

Moradias populares em prédios vazios, abordagem familiar, flexibilização de regras de albergues sociais são algumas das ações sugeridas para solucionar a questão rapidamente, impactando questões como segurança e turismo

  • Por Pedro Jordão
  • 22/05/2022 08h00 - Atualizado em 25/05/2022 20h50
RENATO S. CERQUEIRA/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO morador de rua Número de pessoas em situação de rua cresceu 31% em relação a 2019

Dando continuidade à série de reportagens sobre problemas da cidade de São Paulo na qual já discutimos o aumento da violência e sensação de insegurança e os roubos por falsos entregadores — tratamos agora do aumento do número de pessoas vivendo nas ruas. Segundo a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social da prefeitura de São Paulo (SMADS), a cidade possui atualmente 31.884 pessoas nessa condição. O dado é do Censo da População em Situação de Rua, divulgado em janeiro deste ano. O número cresceu 31% em relação a 2019, quando havia 24.344. O aumento numérico, de 7.540 pessoas, é equivalente a toda população em situação de rua do Rio de Janeiro. O contingente total já ultrapassa o número de habitantes de 69,9% das cidades paulistas. Segundo a gestão municipal, a piora no quadro reflete os impactos da pandemia de Covid-19 e a crise econômica enfrentada pelo país. O problema produz uma série de consequências para a cidade, com impactos nas áreas da segurança pública e do turismo. Especialistas ouvidos pela Jovem Pan defendem que o fato deve ser encarado de forma abrangente, com um acolhimento que ofereça não apenas moradia, mas também oportunidades de trabalho e educação, para que seja possível criar e manter um outro modo de vida.

A pernambucana Grasiely Torreiro, de 34 anos, mora no centro de São Paulo desde 2019, e acha que o aumento do número de pessoas vivendo nas ruas nos últimos anos é evidente. “Circulando pelas ruas do centro antes e depois da pandemia, é notório o aumento do número de pessoas [vivendo] nas ruas. Eu entendo que é uma questão de políticas públicas, mas eu não tenho como não sentir medo, principalmente por ser mulher. Não quero passar uma visão higienista, mas não tenho como não sentir medo. Essas pessoas já estão numa situação de extrema violência, à margem da sociedade, então acabam não tendo muitas escolhas [além do crime]”, comenta. “Entendo que nem todos os moradores de rua representam ameaças. Sei que há pessoas lá apenas tentando sobreviver ao caos, querendo apenas se alimentar ou manter o vício [em drogas], mas também há pessoas que acabam machucando, roubando. Eu evito circular no centro à noite”, afirma.

Segundo a turismóloga Raquel Avelino, o crescimento do número tem outra consequência além do amedrontamento da população: um recuo da capacidade turística da capital paulista. “É muito comum que haja no desenvolvimento de um destino a higienização da paisagem, seja ela natural, urbana, rural. Existe a necessidade de higienizar o local para que fique prazeroso aos olhos dos visitantes. É muito provável que isso gere um efeito negativo na atividade turística, porque esse espaço já não está mais tão limpo e prazeroso para a vista das pessoas que vão chegar na cidade. Os turistas não chegam onde as pessoas realmente moram, eles não vão para as zonas mais afastadas, onde a população mora em massa, porque nesses locais não acontece essa higienização. Esses locais não estão prontos para receber o turista. Quando ocorre o processo inverso é esperado que o turismo recue”, explica.

Apesar de a Prefeitura de São Paulo citar a pandemia da Covid-19 como um dos causadores do aumento da quantidade de pessoas vivendo nas ruas, a professora de sociologia da Universidade de São Paulo (USP) Eva Alterman Blay, defende que a situação foi apenas acentuada pela crise sanitária, e não provocada especificamente por ela, que a realidade vem piorando há muito mais tempo e por diversas questões. “Estamos vivendo um processo de completa desestabilização econômica, do emprego, da indústria, da incorporação da mão de obra rural, enfim. Nesse governo, há uma grande redução das possibilidades de emprego. E, nos grandes centros urbanos, e acho isso terrível, o lixo é o objeto que permite às pessoas comer e trabalhar. Há uma total cegueira de política de emprego, trabalho e produção. Vemos cada vez mais famílias inteiras morando nas ruas. Há dez anos, a gente não via crianças nas ruas como vemos hoje. Havia políticas para elas, crianças tinham onde ficar, escolas e creches”, disse à reportagem. “Quando começou a pandemia, as pessoas se organizavam para doar comida para os mais vulneráveis. Então, não iria haver roubo. Hoje, as pessoas já não estão mais doando. As pessoas [que estão vivendo na rua] querem trabalhar, querem emprego, escola, moradia. Se não recebem nada disso, fica difícil”, acrescenta. O cometário corrobora a informação da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP), segundo a qual houve uma queda na criminalidade de 2020 para 2021.

Entre as possibilidades para resolução da situação, Blay fala da necessidade de utilização de prédios desocupados. “Existem prédios inteiros vazios no centro de São Paulo, como na rua Augusta, por exemplo, um hotel inteiro, com banheiro, tudo, completo. Porque essas pessoas não podem morar nesses lugares? Outros países resolveram isso com esse tipo de política urbana. A propriedade não é privada, é da cidade, ela ocupa de maneira privativa um espaço que é da cidade. Um prédio vazio está ocupando um espaço público”, argumenta a professora. O advogado Ariel de Castro Alves, especialista em políticas de direitos humanos e segurança pública pela PUC de São Paulo, afirma que a solução sugerida pela socióloga é, inclusive do ponto de vista legal, uma alternativa viável para remediar o problema de forma rápida. “Há uma série de edifícios no centro de São Paulo que estão vazios e sem utilização, edifícios públicos, do governo federal, que poderiam ser cedidos para moradia de maneira mais simples. Há também prédios privados que são devedores de IPTU e que poderiam ser desapropriados para serem utilizados como moradia popular”, diz.

Castro Alves destaca, ainda, a necessidade de aprimoramento de albergues sociais, que recebem as pessoas que vivem nas ruas para dormir a noite. “Muitas pessoas deixam esses espaços porque há regras que as impendem de entrar lá com seus animais de estimação, por exemplo. E há leis que proíbem que isso ocorra. Não basta dar uma cama. É preciso que essas pessoas possam entrar com seus animais, com carroças com as quais trabalham, que tenham armários para guardar seus pertences. É preciso entender o caso e a necessidade de cada um”, resume. Outra alternativa defendida pelo advogado é a regularização de ocupações no centro da cidade: “Há edifícios ocupados que, se fossem regularizados, poderiam abrigar mais pessoas e retirar muitos da situação de rua, principalmente nesse momento de maior vulnerabilidade, por causa do frio”.

O especialista em direitos humanos também lembra que a questão deve ser encarada pelo poder público de forma abrangente, entendendo que cada pessoa que vive na rua tem questões específicas a serem resolvidas e atendidas, como os casos de indivíduos com transtornos mentais ou os que são usuários de álcool e outras drogas. “Não adianta apenas abordar as pessoas nas ruas. Todo mundo tem família, é preciso que elas também sejam abordadas para tentar incluir novamente essas pessoas no núcleo familiar (…). Além disso, muitas dessas pessoas que vivem nas ruas precisam de acompanhamento para que possam se readequar a uma vida fora das ruas. Muitos são egressos do sistema prisional e possuem necessidades por documentações. Essas pessoas precisam de capacitação, escolaridade, emprego”, pontua.

No site da Prefeitura de São Paulo, a atual gestão informa que, após a realização do Censo da População em Situação de Rua, foi lançado um novo programa, o Reencontro, que visa amenizar o problema. A ação “prevê moradias transitórias e ações para acolher, a curto e médio prazos, milhares de pessoas que foram para as ruas desde o início da pandemia (…), maior oferta de vagas na rede municipal, um tripé de moradia formado por locação social, renda mínima e moradia transitória, além de capacitação profissional e intermediação para o encontro de postos de trabalho”. Segundo a gestão Ricardo Nunes (MDB), o programa já possui imóveis reservados para a criação de moradias transitórias.

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