Em tempos difíceis para a educação, debate sobre homeschooling ganha força no Brasil

Regulamentar o ensino domiciliar em um momento em que a educação e a vida vivem uma situação de excepcionalidade pode ser um risco muito grande; veja pontos a favor e contra

  • Por Renato Casagrande
  • 03/05/2021 15h10 - Atualizado em 03/05/2021 18h53
Marc Thele/Pixabay Criança estudando em casa pelo computador Avaliação feita em São Paulo pela Saeb mostra que alunos do 5º ano são os que mais sofreram com o fechamento das escolas na pandemia

Quando o tema homeschooling volta à tona, com discursos enfáticos de que é o melhor para a criança, recordo-me do depoimento dado por uma professora em uma das palestras que proferi em uma cidade do interior do Brasil. A professora assustada e em crise de pânico relatou que foi ameaçada por denunciar um caso de violência sexual contra uma das suas alunas, que na época tinha menos de 10 anos de idade. O fato só chegou ao conhecimento das autoridades por meio da escola, ou seja, a aluna confidenciou seu problema à professora, muitas vezes a única pessoa a quem ela poderia pedir socorro naquele momento. Começo minha reflexão com essa história para lembrar que vivemos tempos difíceis. Agora, em meio à crise da pandemia, o tema do homeschooling ganhou força, pois a escola obrigou-se a oferecer o ensino remoto ou a educação híbrida, já que, devido ao cenário atual, não houve possibilidade da oferta da educação na modalidade presencial.

Primeiro, precisamos lembrar que mais de 80% das crianças brasileiras estudam em escola pública e que uma parcela significativa dos pais dessas crianças não tem sequer o ensino fundamental completo. Ora, estamos então regulamentando uma educação para as classes mais privilegiadas? A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), no artigo 52, deixa claro que as crianças precisam ter aulas com professores com formação superior em cursos de licenciatura, ou seja, em cursos preparatórios para o magistério. Diante disso, considerar que os pais estão preparados e aptos para atuarem como professores seria desconsiderar toda a formação dos professores, que por mais precária que seja, é voltada para o preparo do profissional para trabalhar com a formação de crianças e adolescentes.

Outro ponto crítico é que além da falta de conhecimento formal da maioria dos pais ou responsáveis no que tange à formação do aluno, temos um fator preponderante contra essa modalidade de ensino: a necessidade de convívio do aluno com a sociedade e com a comunidade. Muito além dos vizinhos e familiares, a criança precisa se comunicar com outras crianças que tenham uma formação diferente, crenças diferentes, pensamentos e ideologias diferentes para que ela possa desenvolver seu pensamento crítico e complexo e, assim, transformar-se em um cidadão mais consciente e preparado para lidar com os desafios e demandas futuras. Dessa forma, é importante que a criança tenha contato e estabeleça diálogos com pessoas que pensam diferente dos seus pais, para que possa fazer análises mais profundas sobre certas convicções, crenças e valores passados pelos pais e tidos muitas vezes como verdades absolutas.

A pandemia tem nos mostrado que muitas crianças estão adoecendo ou tendo problemas de ordem psicológica por ficarem muito tempo em casa, sem o convívio com colegas na escola e mesmo com os professores, reforçando a importância do espaço escolar, que por ser um espaço público, possibilita que grande parte de nossas crianças e jovens possam exercitar a sua cidadania. Desenvolvendo a consciência de direitos e deveres, individuais e coletivos, e pela progressiva autonomia e autodisciplina dos alunos. Outro fator a ser ponderado é que não se pode considerar mais nos dias atuais que a avaliação da aprendizagem de uma criança se dê meramente por provas em datas pré-estabelecidas, como pretendem boa parte dos defensores do homeschooling. A avaliação da criança é contínua e precisa de um olhar constante por parte dos professores e responsáveis. Não se trata apenas de obter uma boa avaliação no Enem ou no vestibular. Trata-se de obter uma boa formação para a vida. E a formação para a vida necessita de diversidade.

Embora os defensores da proposta da educação domiciliar e os diferentes projetos de leis que tramitam no Brasil prevejam fiscalizações sobre as famílias e pais que optarem por essa modalidade, sabemos que é extremamente difícil essa fiscalização, o acompanhamento e os controles sobre as atividades que as crianças estejam desenvolvendo, bem como os possíveis abusos que possam vir a sofrer. É claro que, em muitos lugares ainda temos uma educação sofrível e que precisa urgentemente de medidas e ações severas e profundas para melhorar a qualidade do ensino brasileiro. Também temos problemas quanto à segurança nas escolas, falta de condições estruturais para os professores realizarem uma boa aula, ambiente físico muitas vezes inadequado e incompatível com as necessidades dos alunos e tantos outros obstáculos que impedem uma educação de melhor qualidade. Mas utilizar esses argumentos para tirar a criança da escola seria o mesmo que blindar nossas casas e carros contra a violência e aceitar passivamente que isso é fato e não pode ser mudado.

Não quero ser taxativo afirmando que não devemos discutir a questão ou até a possibilidade de regulamentar parte da carga horária dos alunos na modalidade homeschooling. No entanto, acho que regulamentar a educação domiciliar, designando que a responsabilidade pela educação formal seja exclusivamente da família, em um momento em que a educação e a vida vivem numa situação de excepcionalidade pode ser um risco muito grande. Em síntese, temos um quadro com os principais pontos favoráveis e desfavoráveis à prática da educação domiciliar ou homeschooling no Brasil.

Argumentos favoráveis ao homeschooling

  1. Insatisfação da qualidade do ensino no Brasil;
  2. A liberdade de organização de tempo e espaço dos estudos;
  3. Respeito ao ritmo do aluno e garantia de protagonismo da criança;
  4. Segurança e conforto;
  5. Ideologias políticas e religiosas alinhadas com os pais ou família;
  6. Desenvolvimento de habilidades socioemocionais, como disciplina, organização, estratégias de aprendizagem, autoestima, empreendedorismo, entre outras; 
  7. Proteção das crianças da prática do bullying e outras pressões sociais inadequadas;
  8. Maior convívio familiar.

Argumentos desfavoráveis ao homeschooling

  1.  Ausência do ensino formal adequado;
  2.  Falta de socialização e integração das crianças no meio comunitário;
  3. Dificuldade de identificação de abusos e violência doméstica;
  4. Dificuldade nas avaliações de aprendizagem;
  5. Ampliação da segregação social e educacional;
  6. Aumento na evasão escolar;
  7. É uma política para poucos. A maioria das famílias brasileiras não tem condições de aplicar a educação domiciliar;
  8. Agravamento da desvalorização dos professores.

Enfim, acredito que temos muitas demandas e necessidades mais urgentes a serem debatidas e regulamentadas. Precisamos, neste momento, gastar nossa energia para transformar a escola e para promover a inclusão digital de alunos e professores. Precisamos que a escola seja o espaço de cultura, de socialização, de integração, de transformação das pessoas. Precisamos, a partir de uma boa escola, promover a mudança no mundo que tanto desejamos e clamamos, não isolando as crianças do mundo, mas ensinando-as a transformá-lo por meio de integração, da diversidade e da ação coletiva.

Comentários

Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.