‘Excesso de cautela’ ou análise científica? Países autorizam aplicação de 3ª dose da vacina contra a Covid-19
Segundo especialistas, não há estudos conclusivos que mostrem a quebra de imunidade das vacinas a longo prazo após aplicação da segunda dose
Oito meses após a primeira pessoa do mundo receber a vacina contra a Covid-19, uma série de países começa a debater a possibilidade de aplicar uma terceira dose do imunizante nas populações mais vulneráveis à doença. Alguns deles, como Israel, Emirados Árabes Unidos, República Dominicana e Rússia já anunciaram ou iniciaram o reforço, que vem como tentativa para barrar o avanço da variante Delta da doença e evitar novos surtos do vírus na população. Especialistas lembram, porém, que não há até o momento estudos conclusivos que comprovem a necessidade do reforço, encarado como um “excesso de cautela” que, apesar de afetar a entrega de imunizantes para países mais pobres, também pode servir como análise científica para os próximos passos tomados diante do vírus.
“Israel estava preocupado que algumas populações pudessem apresentar uma queda muito acentuada [de imunidade] 18 meses após terem tomado a vacina, e que isso pudesse gerar alguns outros surtos nas populações mais vulneráveis, como mais idosas ou que tinham algum fator de imunossupressão, uso de corticoide, ou alguma doença crônica que pudesse causar alguma imunodeficiência”, explica o infectologista do hospital HSANP, Ricardo Cantarim. O médico lembra que o estudo preliminar usado por Israel para justificar a terceira dose seletiva mostra que as vacinas de RNA (como a da Pfizer e a da Moderna) têm eficácia por volta de 96% nos primeiros quatro meses, número que cai para 90% entre o quarto e o sexto mês e para 80% nos meses seguintes. Ele reforça que não há, até o momento, qualquer trabalho mostrando que a diminuição dos anticorpos ao longo do tempo vai gerar a quebra de imunidade das vacinas, ou seja: mesmo com o percentual em queda ao longo dos meses, elas continuam sendo uma “barreira” para diminuir os sintomas e a hospitalização pelo novo coronavírus.
O especialista frisa que todos os estudos envolvendo a possibilidade de uma terceira dose não têm conclusões aprofundadas até o momento e explica que, no caso de Israel, o reforço não é para todos, se resumindo somente aos que são imunossuprimidos ou idosos. Alemanha e França, dois países que informaram cogitar o reforço, também afirmaram que devem focar as campanhas de vacinação em pessoas com baixa imunidade e nos mais velhos. A “carona” que esses outros países pegaram na iniciativa de Israel preocupa a Organização Mundial da Saúde (OMS), que desaconselhou a aplicação da terceira dose por uma equação humanitária: apesar da vacinação em livre demanda em países como Estados Unidos e das altas taxas de imunizados em locais como Reino Unido, muitas nações pobres não têm sequer metade da população vacinada com a primeira dose.
De acordo com a plataforma Our World In Data, da Universidade de Oxford, 15,2% do mundo tem a imunização completa e 29,6% tomou pelo menos uma dose. “Ainda temos muita desigualdade. Como você vai garantir que precisa fazer um impulsionamento na terceira dose se você ainda não imunizou 50% da população mundial?”, questiona Cantarim. O médico Roberto Debski lembra que isso também é um desafio para a produção de imunizantes mundialmente. “Os países já compram, eles têm contrato com consórcio, têm uma série de negociações. Quem ‘pode mais’ no mundo consegue mais. Se há um número limitado disponível vai faltar [vacina] em outros lugares, quando outros países que podem mais comprarem para aplicar a terceira dose. Ainda não há doses suficientes para todo o planeta, nós somos sete bilhões, precisaríamos de pelo menos 14 bilhões e não temos nem metade disso até o momento”, estima.
Mutações podem indicar necessidade de reforço
A expectativa do clínico geral é de que, no futuro, até mesmo pela natureza do vírus, reforços sejam feitos. “O vírus sempre vai sofrer mutações, assim como o da gripe, da influenza, do H1N1, o vírus é mutável. Muita coisa nós ainda não sabemos, mas acredito que sim, que no futuro provavelmente precisaremos [de novas campanhas de vacinação]”, opina. O infectologista do HSANP, porém, acredita que essa “onda mundial” só deve ser seguida se pesquisas que não sejam preliminares realmente comprovarem o risco da variante Delta ou de outras mutações à vacinação atual feita no país. “É difícil fazer isso agora sem ter nenhum subsídio de estudos mais robustos. Acredito que vai ser difícil eles provarem essa terceira dose. Vamos ver como vai se comportar Israel, se isso vai ser benéfico para essas populações, e vamos ver como isso vai se comportar com pacientes imunossuprimidos, porque eles tendenciosamente produzem menos anticorpos, pacientes idosos, a mesma coisa. A gente vai ter que esperar. Eu acredito que a gente vá ter que tomar outra vacina, talvez, no ano que vem. Acho que é cedo para falar, mas a gente está em uma situação na qual tudo pode acontecer dentro das variáveis que a gente conhece”, afirma.
No Brasil, o Ministério da Saúde anunciou no último dia 28 que iniciaria um estudo para avaliar a necessidade de uma terceira dose da CoronaVac, produzida no país pelo Instituto Butantan com tecnologia do laboratório chinês Sinovac. Um grupo de pessoas que tomou a segunda dose da vacina há pelo menos seis meses deve ser dividido em duas partes: uma receberá a terceira dose da CoronaVac e outra receberá vacinas da Janssen, Pfizer ou AstraZeneca, tendo, no futuro, a quantidade de anticorpos criados por eles analisada. “Estamos estudando o tema, né? Já anunciei que vamos fazer uma pesquisa para orientar melhor qual vai ser a decisão dos gestores públicos e essa pesquisa naturalmente será adicionada a outras que inclusive já existem e aí tomaremos a melhor decisão”, disse o ministro Marcelo Queiroga em conversa com jornalista na sexta-feira, 6. No Senado, a comissão que acompanha as ações de combate contra a Covid-19 debaterá quais grupos teriam a necessidade de uma terceira dose se o país realmente adotasse a medida.
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