Desde quando cercar praças transformou-se em política pública para combater o tráfico e tratamento de dependentes químicos?

Intervenções do poder público que visam dispersar a concentração de pessoas por meio da repressão policial mostram-se ineficazes no combate à pobreza e à incapacidade do cidadão de inserir-se às dinâmicas sociais

  • Por Helena Degreas
  • 17/05/2022 10h00 - Atualizado em 17/05/2022 13h10
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WILLIAN MOREIRA/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO cracolandia Ação realizada na última semana resultou na morte de Raimundo Nonato, de 32 anos, baleado, segundo testemunhas, por policiais

Desde 2005, os meios de comunicação publicam entrevistas, artigos e colunas relacionados ao consumo e comercialização de drogas ilícitas na região conhecida como Cracolândia (junção da droga conhecida como crack à “lândia” entendida como área, território), cidade de São Paulo. A falta de solução para a questão é tão antiga e conhecida dos paulistanos que, além das inúmeras pesquisas e artigos acadêmicos produzidos sobre o tema, a denominação do local já pode ser encontrada como vocábulo da Wikipedia.

Tratada como operação policial e questão de saúde pelo governador Rodrigo Garcia, a dispersão dos dependentes químicos realizada durante a ação policial na madrugada do dia 11 na Praça Princesa Izabel, resultou na morte de Raimundo Nonato Fonseca Junior, de 32 anos, baleado, segundo testemunhas, por policiais. Das 20 pessoas levadas a delegacia, cinco foram acusadas de tráfico de drogas. A morte de um ser humano desarmado é inadmissível e injustificável. Houve o assassinato de uma pessoa vulnerável por arma de fogo. Se o disparo saiu da arma de um agente policial, só a perícia poderá responder. A pergunta que não quer calar é: “Por que estava armado em meio à multidão? É protocolo de segurança?”. Aguardamos explicações.

Repressão, expulsão, internação, prisão e demolição de trechos centrais da cidade ocupadas por dependentes químicos e traficantes (marca da passagem de José Serra pela prefeitura em 2005 e pela gestão Kassab em 2012 com a Operação Sufoco) são algumas das ações que pretendiam tratar a ocupação urbana de pessoas em situação de vulnerabilidade social como questão de polícia. Em coluna anterior, comentei sobre as cidades que odeiam seus cidadãos. Ou melhor, os grupos formados por pessoas diferentes daqueles que legislam nas câmaras e assembleias: pessoas pobres, em situação de vulnerabilidade social.

Para além dos programas sociais conhecidos como Recomeço (Geraldo Alckmin, 2013), Braços Abertos (Fernando Haddad, 2014) e Redenção (João Doria, 2017), o cercamento de espaços públicos entrará na pauta de discussões da agenda urbana municipal e estadual como uma das marcas da gestão do prefeito Ricardo Nunes e do governador Rodrigo Garcia no combate ao tráfico e dispersão de indivíduos indesejados em áreas públicas. A ausência de dados confiáveis, validados por métodos claros e instrumentos adequados de avaliação que permitam conhecer quem encontra-se em situação vulnerável e quem é traficante, impedem a avaliação da eficácia que tais medidas apresentam nos resultados de desintoxicação, redução do número de usuários locais, de reinserção social plena (trabalho, moradia etc.)  ou mesmo de informações sobre os volumes comercializados pelos traficantes. Entendo a complexidade de todas as questões envolvidas na Cracolândia, mas perseverança, apoio à saúde por meio do encaminhamento às comunidades terapêuticas (sustentadas prioritariamente por repasses federais que mesclam trabalho, oração e abstinência) e repressão policial para prender traficantes e colocar em risco de morte inocentes, não é suficiente para reduzir o sofrimento de pessoas e garantir a vitalidade pública adequada aos moradores, visitantes e comerciantes locais. Governador e prefeito, criem um comitê multidisciplinar com especialistas (pesquisadores, organizações sociais, gestores públicos) para a criação de políticas públicas transversais que visem a reinserção social abrangendo dependentes químicos e pessoas em situação de rua que moram no local. 

Intervenções do poder público que visam dispersar a concentração de pessoas por meio da repressão policial com o objetivo de alterar a localização do fluxo e facilitar o atendimento dos agentes de assistência social, mostram-se ineficazes no combate à pobreza e à incapacidade do cidadão de inserir-se às dinâmicas sociais urbanas. Desde 2005, é possível comprovar que o fluxo, o tráfico e o consumo retornam dias depois, se não ao mesmo território, ao seu entorno próximo. Ações no âmbito da saúde associadas a programas sociais que incluem habitação, alimentação, moradia, segurança, proteção à infância e à maternidade, condições de trabalho e sustento além da educação são direitos previstos pelo artigo 6º da Constituição Federal (1988). O projeto de lei de autoria do Vereador Fabio Riva (PSDB) propõe cercar a praça Princesa Izabel e transformá-la em parque público permitindo, por meio desta ação, o controle de acesso ao local. O discurso ambiental do vereador se não for ingênuo, parece imbuído de má fé.

De forma clara, o Padre Júlio Lancelotti reitera o papel das ações higienistas do poder público destacando, dentre várias, a construção de obstáculos sob viadutos e pontes além da inclusão de lanças e pedras para impedir a ocupação dos espaços públicos. Agora, poderá incluir na lista das aberrações criadas por agentes públicos, as cercas e grades em praças, o ápice da construção hostil. Não tenho palavras para expressar a ojeriza que sinto por esta proposta do vereador. Praças são espaços públicos que acolhem seus cidadãos, fortalecem o senso de identidade local, permitem o encontro descompromissado e incentivam as práticas de sociabilidade dos habitantes nas cidades. Na contramão da meta 11.7 da Agenda Municipal 2030 que propõem dar condições de acesso e o uso a toda população de ambientes públicos com o objetivo de fomentar a interação social e também opõem-se ao art. 40 da nova agenda urbana (Un-Habitat) que reforça a necessidade de fortalecer a coesão social, o diálogo e a compreensão intercultural, a tolerância, o respeito mútuo, igualdade de gênero, inovação, empreendedorismo, inclusão, identidade, segurança e dignidade de todas as pessoas. Garantir políticas públicas que promovam o pluralismo de ideias e a coexistência pacífica em sociedades cada vez mais heterogêneo e multicultural é o que se espera dos vereadores, do líder da câmara e do prefeito de São Paulo.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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