O papel do ativismo urbano na construção de uma cidade socialmente justa

A história da arquiteta Ester Carro, fundadora do Instituo Fazendinhando, é uma entra as muitas que inspiram o movimento de transformação territorial, social e cultural de regiões em situação de vulnerabilidade

  • Por Helena Degreas
  • 28/12/2021 09h00 - Atualizado em 28/12/2021 11h22
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Divulgação/Fazendinhando Mulher jovem negra de cabelos enrolados posa ao lado de quadro com a frase A arquiteta Ester Carro é fundadora e CEO do Instituto Fazendinhando, do Jardim Colombo, em Paraisópolis

O predomínio de autoconstruções que independem do título de propriedade do terreno, ocupações à margem das regulações urbanísticas, grande parte das ruas não asfaltadas, gatos para a obtenção de energia elétrica, coleta de esgoto aquém das necessidades, ausência de áreas qualificadas para a cultura e recreação, áreas verdes e até escolas não impediram a jovem Ester Carro de sonhar com a transformação do bairro em que cresceu: Jardim Colombo, Paraisópolis, São Paulo. Com a pergunta “por que não podemos ter arquitetura de qualidade nas favelas?” e alguns percalços ao longo da jornada, formou-se arquiteta e urbanista com o incentivo e apoio dos pais. Não parou por aí. Mestre em urbanismo, seguiu carreira como professora e pesquisadora do núcleo Mulheres e Territórios do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper. Ainda jovem, deu os primeiros passos em direção à liderança comunitária e, em 2021, com o apoio de membros da comunidade local, universidade e parcerias, fundou o Instituo Fazendinhando, que tem como missão ampliar o movimento de transformação territorial, social e cultural de regiões em situação de vulnerabilidade por toda a cidade

Destaca-se em seu trabalho como líder comunitária e ativista urbana a transformação de um terreno que servia como área de descarte de lixo e entulho das residências do Jardim Colombo. Afinal, o caminhão para a coleta de lixo não chegava em todos os lugares do bairro. Preocupada com a saúde da população e com a ausências de áreas públicas para a recreação de todos os moradores, Ester perguntou-se: “E por que não um parque?”. Onde antes havia o abandono e perigo a saúde, ela viu uma oportunidade e propôs aos moradores a construção de um complexo comunitário em 2017. Com a ajuda de voluntários, o equivalente a 45 caminhões de resíduos foram retirados do local, evidenciando o potencial do único espaço livre para a construção de uma área para a recreação das crianças e jovens. Domar a declividade do terreno, criar sombras com o uso da vegetação e encontrar mão de obra para continuar a construção e manutenção foram algumas das dificuldades encontradas. Mas, a maior de todas, foi a de evitar novas ocupações e mudar os comportamentos daqueles que não se importavam mais com o bem comum. 

Nova questão: como envolver pessoas que, cansadas das conversas de políticos (blá, blá blá, lembrando a expressão de Greta Thunberg após os discursos de lideranças sobre suas ações para a redução dos gases de efeito estufa), perderam não apenas a esperança de melhoria da qualidade de vida urbana como também aquele “brilho nos olhos” que nos leva a buscar os nossos direitos como cidadãos por meio de reivindicações nos diversos fóruns de discussões para as políticas públicas municipais. A solução veio por meio da cultura: a organização de um festival, em 2018, com a chegada de Antonio Moya, estudante do mestrado em planejamento urbano do MIT que teve a ideia de promover um “summer job” com a realização de oficinas e encontros comunitários, buscando reunir os sonhos dos moradores para aquela área vazia. Deu certo!

Hoje, Ester Carro está realizando um intercâmbio em Medellín, na Colômbia, cidade considerada referência internacional no desenvolvimento do urbanismo social graças à adoção de boas políticas e práticas de gestão urbana que têm por objetivo a integração entre bairros por meio da pacificação, da interação entre as lideranças comunitárias, das parcerias com a iniciativa privada e da articulação de políticas urbanas que visam levar os serviços de infraestrutura e equipamentos públicos urbanos aos bairros atendidos. Iniciamos nossa conversa com mais uma pergunta que suscitou algumas as reflexões desta coluna: por que não podemos ter a mesma infraestrutura e equipamentos públicos de qualidade que tem o bairro vizinho, Morumbi, em São Paulo? Afinal, apenas poucos metros separam os dois locais. 

Cidade é infraestrutura. É a materialização de relações sociais. Lado a lado, convivem a cidade formal, que atende as regulamentações urbanas. Na rua ao lado, temos a cidade informal, resultado de séculos de ausência de políticas públicas de acesso à educação, saúde, segurança, habitação e transporte, por exemplo. A tubulação que leva água potável e faz a coleta do esgoto residencial chega até um ponto. Não entra em trechos do Jardim Colombo ou em vários locais de Paraisópolis. O mesmo ocorre com o caminhão de lixo, com o carteiro. Nem todas as ruas têm nome oficial, tampouco numeração. O rio que atravessa? Continua aberto, sujo e sem tratamento. Tem-se a previsão de um parque linear. Por enquanto, fica só na previsão. O mesmo em relação aos demais serviços prestados pelo poder público municipal. Entra prefeito, sai prefeito, os projetos e propostas andam a passos lentos, isso quando não ficam parados por anos a fio deteriorando-se. Há propostas muito boas para a urbanização do local. Algumas sobre regularização fundiária, outras sobre instalação de escolas. Aguardar é a solução?

Me pergunto diariamente o que faz a prefeitura não realizar o serviço, não apenas em Paraisópolis, mas nos demais bairros da cidade em que se tem infraestrutura e prestação de serviços públicos precárias. Qual é o problema? Bairros informais não existem quando analisados pela perspectiva da propriedade da terra. É preciso que o poder público e seus gestores, eleitos ou não, assumam que a moradia urbana é um direito constitucional e que vai muito além da habitação, da casa. E, também, que a terra urbana, para além da do título de propriedade, do valor de mercado dada a ela para compra e venda, exerce uma função social. É preciso entender (ou ao menos querer) que novas formas de ocupação dos territórios urbanos foram sendo constituídas ao longo de séculos de abandono das populações socialmente vulneráveis. A propriedade da terra, a partir dos altos valores do solo urbano é inviável para a maior parte das pessoas comuns. Crédito, então? Nem pensar. Só para aqueles que têm conta em banco e imóveis como garantia. Por que insistir neste modelo de urbanização que continua materializando habitações subnormais que excluem cidadãos e se materializam em favelas, palafitas, loteamentos irregulares, ocupações e tantos outros que se encontram Brasil afora? Às vezes, tenho a impressão de que a propriedade da terra está aí para alimentar o sistema bancário. Para este tema, recomendo fortemente a leitura do livro “Guerra dos Lugares: A Colonização da Terra e da Moradia na Era das Finanças”, escrito pela urbanista Raquel Rolnik e que é fruto das reflexões realizadas ao longo de seu mandato como relatora para o Direito à Moradia Adequada da ONU.

O que ocorre é que se a lei urbana é vigente no território, a cidade é formal e tem, pela lógica institucional, a presença do Estado, ou seja, o direito a implantação de infraestrutura pública. O Jardim Colombo e o Paraisópolis são exemplos desse urbanismo no mínimo estranho, incompreensível. Ao atravessar a rua, temos o bairro do Morumbi, onde habita uma população de alto poder aquisitivo e que tem à sua disposição toda a oferta de serviços e equipamentos urbanos. Por algum motivo que apenas quem elabora as políticas públicas e define destinação de orçamentos na prefeitura sabe, a infraestrutura não “atravessa a rua” para atender a demanda e as necessidades de cidadãos que residem e trabalham há várias gerações no local. Intervenções vêm sendo realizadas há anos, mas ainda estão longe de serem finalizadas. Por que não seguem as diretrizes do Plano Diretor da cidade? Perde a população, perde a cidade como um todo. Resta para estes casos que não são poucos, o ativismo urbano como uma das formas na qual pessoas e grupos reivindicam a cidade como valor de uso, e não como mercadoria, cujo valor está construído sobre a compra e venda. Organizados como coletivos, movimentos sociais, associações ou até grupos de vizinhos, todos têm em comum a participação ativa nos rumos de suas ruas, bairros e cidades, defendendo por meio de suas ações o bem comum e os lugares em que vivem frente aos mandos e desmandos de vereadores, prefeitos e demais gestores públicos.

Não se trata dos grandes movimentos que lutam por setores urbanos como àqueles que ocorreram em 2013 e deram início a pautas para reivindicações como a do Movimento Passe Livre, que convocou atos contra o aumento de 20 centavos nas tarifas de ônibus, metrô e trens em São Paulo. De caráter local e apartidários, grupos e organizações como o Instituto Fazendinhando, o Movimento Parque Augusta, o movimento Chácara das Jaboticabeiras, todos na cidade de São Paulo, pretendem envolver pessoas para discutir o bem-estar comunitário, o direito ao acesso aos bens públicos urbanos e resistir de alguma forma às transformações urbanas engendradas nos gabinetes públicos que, sem a adequada participação da população envolvida, não contribuem de maneira positiva para o desenvolvimento social urbano. Nossos representantes políticos confundem, em muitos casos, o bem público como propriedade do Estado. Todos sabemos que a cidade é feita pelos cidadãos e para eles. 

Distante das políticas públicas e dos partidos, o ativismo urbano introduz formas de organização e mobilização dos cidadãos por meio de participação direta na transformação da realidade mostrando-se alheio às formas tradicionais que conhecemos de representação pública partidária/eleitoral e dos instrumentos de participação popular (conselhos e conferências) criados pela Lei 10.257, conhecida como Estatuto da Cidade. Seus membros participam ativamente no desejo e na transformação da realidade local por meio da mobilização: têm pressa. Sem a participação popular nas decisões urbanas, não há como se alcançar justiça social e desenvolvimento humano. É neste contexto que expresso minha admiração pela urbanista e ativista urbana Ester Carro. Tem sonhos. Envolve pessoas. Contamina com a sua perseverança as transformações das quais realidade urbana tanto necessita.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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