Pandemia, problemas da edição 2020 e crise no Inep desestimulam estudantes a realizarem o Enem
Prova deste ano tem 3,1 milhões de inscritos, o menor número desde 2005, e deve seguir o recorde de abstenções visto no exame passado
Assim como em 2020, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) pode vivenciar um novo recorde de abstenções em 2021. A prova de 2020, que foi aplicada apenas em janeiro de 2021 após ser adiada em virtude da pandemia de coronavírus, teve uma taxa de abstenção de 51,5%, quase o dobro da edição anterior, sendo a maior desde 2009, com 37,7%. A versão online, oferecida pela primeira vez neste ano, teve uma abstenção total de 71,3% entre os 96 mil candidatos inscritos. Com provas marcadas para 21 e 28 de novembro, o Enem 2021 deve seguir o mesmo caminho do seu antecessor. São 3,1 milhões de inscritos para o exame, o menor número desde 2005. Para Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV, o impacto que a edição 2021 vai sofrer é uma consequência da falta de coordenação nacional para a implementação de um ensino à distância efetivo no Brasil ao longo dos últimos dois anos. “O fechamento prolongado das escolas fez com que muitos jovens, especialmente aqueles que vêm de famílias em situação de maior vulnerabilidade, não se sentissem preparados para fazer o Enem. Lembrando que muitos municípios brasileiros e muitas redes não têm a infraestrutura que outras têm. O MEC teria sido bem-vindo naquele momento”, relembra a ex-diretora de educação do Banco Mundial.
É o que sente Emmanuelle Victoria, de 17 anos. “O início da pandemia tirou das escolas públicas cerca de dois meses de aula até o início do ensino remoto e a distribuição de apostilas. Isso nas escolas estaduais, porque as outras redes levaram mais tempo para voltar. As apostilas oferecidas pelo governo eram limitadas a resumos de cinco aulas por bimestre, com explicações consideras simples, porém, sem a explicação um professor, tudo fica mais difícil. O mesmo conteúdo era dado no Classroom, o que também não era muito bom, já que muitos professores nem mesmo sabiam como utilizar a plataforma, ainda que tivessem sido ‘treinados’ pela Secretaria Municipal de Educação”, conta a estudante do terceiro ano de colégio estadual em Barra Mansa, região Sul do Rio de Janeiro. “Com a chegada da pandemia, muitos alunos perderam entes queridos, como é o meu caso. Outros precisaram trabalhar, deixando os estudos de lado por um tempo ou realizaram as atividades com total auxílio da internet e não aprenderam nada”, acrescenta Emmanuelle.
“Eu sei que o nível do Enem exige de mim muito mais do que eu aprendi na escola nos últimos dois anos. Não tive a oportunidade de me preparar, de receber dicas e conselhos dos professores, nem de treinar e rever conteúdos importantes para a realização da prova. Óbvio, nada é impossível, eu poderia ter estudado mais. Porém, não estava com emocional nem psicológico para isso. Portanto, eu vejo que perdi muito mais de dois anos de aula. Esse tempo não volta e agora cabe a mim correr atrás de aulas particulares complementares para ter pelo menos alguma chance de êxito no Enem. Farei a prova esse ano, mas sem esperanças de passar, e deixarei para fazer um curso pré-vestibular no próximo ano”, completa Emmanuelle.
Para Claudia Costin, os problemas não se limitam apenas à falta de aulas e falta de estrutura, mas passam também pela forma como o Ministério da Educação e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) conduziram a edição anterior em meio à pandemia. “Independentemente disso, houve erros adicionais. Um deles é que quando foi anunciado que seria aberta uma consulta aos estudantes sobre qual seria a melhor época para os estudantes realizarem o Enem 2020, o mês de maio ganhou. Mesmo assim, o MEC decidiu fazer em janeiro. Muitos se inscreveram, mas não foram, e não foi só porque eles não se sentiram preparados. Nós estávamos em um momento bem delicado da pandemia. É bom lembrar que os estudantes pegavam o transporte público e ninguém estava vacinado naquele momento. Era um risco adicional”, aponta Claudia.
Esse é o caso de Iasmim Seibert Haas, de 19 anos, que desistiu de realizar a prova deste ano pela experiência anterior. “A experiência do Enem 2020 foi bem estressante e cansativa. Eu entendo muito bem o quão necessário é o uso de máscaras em ambientes públicos, porém, passei mal na última edição, com falta de ar. Pela ansiedade e pelo uso da máscara, tinha medo de tirar até para beber água. Esse foi um ponto que questionei na hora de decidir se faria ou não”, conta a estudante de Passo do Sobrado, Rio Grande do Sul. Clara Penelle, de 18 anos, é outra inscrita que não se sente preparada para o exame. A jovem de Paraguaçu, Minas Gerais, assim como muitos outros pelo Brasil, começou a trabalhar durante a pandemia para complementar a renda da família e, por esse motivo, não conseguiu se dedicar aos estudos o suficiente para realizar uma prova como o Enem. “Por conta da pandemia, eu comecei a trabalhar. Meu horário de trabalho é o mesmo das aulas online, então eu só entregava as atividades por ‘rumo’. Não conseguia nem ver as aulas porque ficava cansada”, diz a aluna do segundo ano do Ensino Médio, que também enfrentaria problemas financeiros para chegar até o local da prova. “Eu não tinha preparo, mas ia tentar mesmo assim, porém a van para eu chegar até o local da prova na cidade vizinha estava cobrando R$ 70,00 reais. Essa última notícia que saiu de que o Enem está ficando ‘a cara do governo’ só me desmotivou mais e eu realmente desisti”, finalizou a mineira.
Crise no Inep e denúncias de interferência na prova podem descredibilizam imagem do Enem
Nas últimas duas semanas, 37 servidores pediram demissão do Inep alegando “fragilidade técnica e administrativa da atual gestão” da autarquia. Dias após o grupo pedir a exoneração dos cargos, o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), afirmou que as questões do Enem “começam a ter a cara do governo”. “O que eu considero muito é que começa a ter a cara do governo as questões da prova do Enem. Ninguém precisa estar preocupado com aquelas questões do passado, que caía tema de redação que não tinha nada a ver com nada, realmente é algo voltado para o aprendizado”, afirmou Bolsonaro em conversa com a imprensa em Dubai.
Após a afirmação do presidente e dos servidores darem conta de que havia uma certa censura para evitar temas contrários ao governo na prova, o Ministério da Educação veio a público negar que a escolha das questões incluídas no exame siga qualquer orientação ideológica. “O processo de elaboração das provas do Enem é conduzido por comissões de professores especialistas, com representantes de todas as regiões do país, selecionados por meio de publicação de edital de chamada pública. A seleção dos itens da prova a partir do Banco Nacional de Itens (BNI) segue diretrizes que não incluem qualquer juízo ideológico”, disse a pasta. Em entrevista à Jovem Pan News, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, negou qualquer tipo de interferência do governo no exame. Ele disse ainda que não teve acesso antecipado às provas e que a polêmica envolvendo os servidores do Inep era muito mais uma questão administrativa do que de educação. Em seguida, Bolsonaro também alegou não ter tido acesso ao conteúdo das questões.
A afirmação do chefe do Executivo sobre uma possível interferência política na prova, porém, preocupou políticos, profissionais da educação e estudantes. “Eu estou começando a estudar para fazer o próximo Enem. Estou indo com calma, no meu tempo, mas tenho muitas dúvidas devido à afirmação do presidente que o Enem começa ter ‘a cara do governo’. Pretendo estudar o que sempre estudamos e o que costuma cair na prova, mas, sinceramente, não sei o que esperar”, afirma Carliane Lopes, de 19 anos, moradora de São Luís, no Maranhão. Na quinta-feira, 18, a Comissão de Educação do Senado aprovou a criação de um grupo de trabalho para monitorar a crise na instituição. Claudia Costin, porém, garante que os estudantes não devem se preocupar e ressalta a importância do Enem para o futuro dos jovens brasileiros. “Eu acho que essa edição do Enem não vai ter um grande risco em relação às questões, porque existe um banco de questões, elas têm que ser pré-testadas e o último pré-teste que aconteceu foi em 2019. Então, eu não estou preocupada tanto com isso. Pode ter havido censura em palavras, mas não tem como inventar outras questões”, justifica a diretora da FGV, que teme que a credibilidade da autarquia seja questionada.
“Eu estou preocupada é com a perda de credibilidade do Enem e do Inep. Esse corpo profissionalizante de funcionários com uma abordagem técnica levou anos para ser construído. Não é difícil destruir a credibilidade do Inep. Se a gente começar a sentir que vai haver ingerências políticas nas provas ou até que o governo está colocando pessoas despreparadas para liderar o Inep, as chances de perda de respeitabilidade são imensas e esse papel de porta de entrada para o ensino superior que o Inep construiu ao longo dos anos pode se perder”, avalia Claudia. “Os jovens não vão mais querer prestar o Enem e os antigos vestibulares vão prosperar, perdendo essa possibilidade que foi oferecida pelo Enem à juventude de poder aplicar para diferentes universidades pelo Brasil afora, não só públicas como particulares”, lamenta a ex-diretora do Banco Mundial. “Eu queria falar para os alunos irem fazer o Enem, porque esses problemas todos que foram anunciados não inviabilizam essa edição do exame. E para a vida desses estudantes, para a possibilidade de construção do futuro e até mesmo para que as universidades tenham um público mais diverso é importante que eles realizem a prova”, finaliza.
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